domingo, 4 de novembro de 2007

remorso de baltazar serapião (o) - walter hugo mãe

Prémio José Saramago 2007, este romance de Walter Hugo Mãe, escrito curiosamente em 2004 mas só agora premiado, situa a acção em Portugal durante o reinado de D. Dinis, logo em plena idade medieval entre os anos 1279 – 1325.

Época brutal e miserável, Baltazar Serapião é o filho mais velho de três (dois rapazes e uma rapariga) que subsistem da agricultura e devem vassalagem a D. Afonso, o senhor feudal todo poderoso.

É nessa perspectiva que a irmã de Baltazar, quando chega à adolescência, vai servir para a casa de D. Afonso, acabando por o servir sexualmente a ele, algo que a família não vê com bons olhos mas que o medo os faz calar.

Baltazar Serapião que, sexualmente falando se vai desenrascando com uma pobre diaba, a puta do sítio, acaba por cair de amores por Ermesinda, casando-se pouco depois.

Mas D. Afonso mete os olhos em Ermesinda e exige que a mesma vá todos os dias a sua casa. Para fazer o quê? Essa é a pergunta que está por detrás de todo o trama do romance.

Baltazar é assaltado por terríveis dúvidas sobre a fidelidade da sua mulher e, imbuído pela sua imaginação e pelas conversas que ouve, emprega terríveis castigos físicos a Ermesinda diante da aquiescência de todos que achavam comportamentos desses normais e até morais.

Num trabalho notável de linguagem (Walter Hugo recria o português medieval), este livro é, quanto a mim, único no panorama literário português.

Não sendo propriamente um livro fácil de se ler, não só devido à linguagem como também à estrutura do texto (nota-se claramente a influência de Saramago), é sim um livro sobre a condição de vida da época medieval e, sobretudo, sobre a condição das mulheres que eram inferiores aos animais.
Gostei imenso do livro, pese embora o tenha achado por vezes repetitivo e algo aborrecido, pois há situações que se repetem e a obsessão e as dúvidas de Baltazar pela mulher é algo que se repete por diversas vezes, deixando também antever o fim do livro.

sábado, 3 de novembro de 2007

Longa Caminhada (A) - Slavomir Rawicz



No dia 17 de Setembro de 1939, o exército da URSS invadiu a Polónia. Cerca de um mês antes, mais propriamente no dia 23 de Agosto, a Alemanha nazi, através de Hitler, firma um acordo de Não-Agressão com a URSS de Joseph Estalin. Esse acordo previa a divisão da Polónia entre a Alemanha e a URSS no final da guerra. No dia 1 de Setembro, os alemães invadem a Polónia pelo Ocidente, enquanto que a 17, a URSS invade o país através das suas fronteiras do Oriente. Nessa invasão muitos inocentes perecem às mãos das tropas nazis e russas, no entanto, são as acusações de traição e espionagem que são hoje alvo de relatos e investigações. E é precisamente por uma acusação de ser espião, que o tenente da cavalaria do exército polaco, Slavomir Rawicz, se vê no meio do inferno.

Esta é uma história real. Narrada pelo próprio e escrita pela primeira vez em 1956, este é um relato pungente de homens que se viram acusados e privados da liberdade sem que nada tenham feito. O único mal que fizeram foi de terem estado no local errado aquando da passagem da maré fascista, numa autêntica "caça às bruxas" na União Soviética. Este é um relato, um grito de alerta ao mundo contra os malefícios do comunismo, da fanatismo político, do fascismo e, principalmente um grito a favor da liberdade e da vida, pois e conforme o próprio Rawicz afirma: "A liberdade é como o oxigénio".

Mas Slavomir Rawicz vê-se, sem saber porquê, aprisionado pelos russos que, sob enormes e variadas torturas, insistem para que ela assine um papel onde admite a sua culpabilidade. Recusando-se sempre a assinar tal documento, acaba por ir a julgamento sendo então condenado a 25 anos de trabalhos forçados num campo de trabalho na Sibéria. Já nesse campo (campo 303), Rawicz narra todas as privações e principalmente a forma como os próprios presos se organizavam. Até que derivado de alguns acontecimentos, toma consciência que a fuga é possível, no entanto ele sabe que a percentagem de êxito é baixa, mas ela existe.

Juntando-se a um grupo de 7 homens, no qual se inclui um engenheiro americano que se irá revelar um elo fundamental, estes homens iniciam uma fuga de 8.000 km, atravessando toda a Sibéria, Mongólia, Tibete, Himalaias, chegando por fim à Índia, onde são acolhidos pelo exército britânico.

Essa travessia dura cerca de um ano e é inimaginável o que aqueles homens sofrem.

Como devem supor, atravessar a Sibéria torna-se um tormento, ainda mais não tendo praticamente quaisquer víveres, dormindo de dia escondidos pelo gelo e caminhando de noite. Agora imaginem atravessar o deserto de Gobi (Mongólia) em pleno Verão e sem água. As descrições são tão reais e fortes, damos connosco a sentir o sufoco do calor, a lingua inchada, as pernas inchadas e os pés em chagas de tanto andarem.

Toda esta jornada se desenrola a pé. Trata-se de uma fuga e mesmo fora dos territórios da URSS, eles não estão seguros, pois os países que atravessam mantém laços de amizade com a URSS, logo, é sempre possível serem capturados.

Rawicz escreve este livro muitos anos depois. A edição actual é de 2000, revisada pelo próprio. Há muitos acontecimentos que o próprio afirma não se lembrar ou de ter uma ténue lembrança, no entanto e é talvez onde encontre algo a apontar a este relato, nota-se, aliás, sente-se e até se pode ler nas entrelinhas, que muita coisa ficou por contar. Embora ele afirme variadas vezes que não se recorda ou que não sabe bem como aconteceu, fiquei com a clara sensação, para não dizer a certeza, que ele omite propositadamente certos factos. A história da mulher do comandante do campo que o ajuda na fuga, está muito mal contada e claramente inacabada. Não sei se se passou algo entre eles, sinceramente não me pereceu, mas sente-se que ele a menciona porque ela foi importante na História, mas há algo que ele omite.

Depois também achei, e continuo-o a achar, muito estranho que, depois daquela fuga, não se terem iniciado buscas ou perseguições para capturar os fugitivos. Eles fogem e jamais relatam qualquer visão de qualquer perseguição. Mesmo com aquelas temperaturas, a nevar toda a noite, o que apagaria qualquer rasto que eles tivessem deixado, achei no mínimo estranho. Depois é também a aparente "facilidade" com que eles vão caminhando. Encontram sempre gente acolhedora que raramente lhes fazem perguntas. Enfim, não ponho em causa nada do relato, mas apercebi-me que existiram acontecimentos que Rawicz achou por bem não mencionar ao mundo.

Mas e mesmo com estes pequenos pormenores, esta é de facto uma viagem fantástica. Eles percorrem sítios recônditos de países longínquos, vêm gentes e seres estranhos (achei fabuloso o estranho encontro que ele têm em pleno Himalaias com duas estranhas criaturas que, segundo opinião de Rawicz, só podiam ser esse ser chamado Abominável Homem das Neves), passam fome, frio, sempre agarrados à esperança de alcançar a liberdade, sempre apoiados uns nos outros, todos como sendo um único corpo. Este é um relato comovente de amizade, coragem, dor, solidão, solidariedade, amor e fraternidade. Uma história que de certo incomoda todas aqueles que defendem e fomentam o comunismo e o fascismo e até para a própria História da Rússia, uma história que merece ser divulgada pelo mundo inteiro.

A todos que gostam de ler bons livros, a todos aqueles que gostam de fazer parte desta "família" chamada ser-humano, a todos aqueles que fomentam o amor e a solidariedade ao próximo, apenas posso aconselhar a leitura urgente deste magnífico livro. No entanto, para aquele que me incentivou a ler esta obra, deixo aqui o meu obrigado, assim como à restante comunidade livriana pelas suas excelentes dicas.

Mais Bela História da Terra (A) - André Brahie, Paul Tapponier, Lester R. Brown



Como tudo começou?
Quando olhamos para o céu, numa daquelas límpidas e escuras noites, contemplando todos aqueles pontos luminosos a que vulgarmente denominamos de estrelas, alguma vez pensaram ou sequer imaginaram, como é que tudo começou? Têm consciência da incomensurável grandeza e da tamanha e fenomenal violência que desencadeou todo esse Universo onde nos inserimos?
E por falar em nós, será o nosso planeta o único que reúne estas excepcionais condições de vida em todo o Universo? Como terá sido o processo de nascimento e consolidação do nosso planeta e dos restantes que compõem o nosso sistema? Poderá existir vida noutros planetas ou, fazendo a pergunta de outra forma, será que existem outros planetas em que as condições para o surgimento da vida sejam tão boas quanto às verificadas na Terra?
Jacques Girardon é um reputado jornalista francês, cujo trabalho está directamente ligado à Astrofísica, Biologia e Geofísica.
Para elaborar este pequeno mas fabuloso livro, convidou três cientistas que são referências dentro das suas ciências: André Brahie, astrofísico, professor na Universidade de Paris VII e director de pesquisas no CEA em Sealay. Paul Tapponier, geofísico, director do laboratório de tectónica no Instituto de Physique du Globe, em Paris e Lester R. Brown, agrónomo, fundador e director do Worldwatch Institute, em Washington.
Assim e em separado, Girardon efectuta uma entrevista com cada um deles.
O primeiro é André Brahie que disserta sobre quando e como surgiu o Sistema Solar e os Planetas; como o Universo se foi expandido; de como ainda hoje se pode “ver” vestígios dessa explosão primitiva; o Sol como sendo uma estrela inusual no Universo; Os primórdios da Terra; os principais componentes do planeta; o enigma da Lua, etc. ou seja, assente na sua ciência, Brahie segue uma linha de orientação muito coerente e clara. Começando na explicação da acumulação de energia que originou a explosão primitiva (Big Bang), ele segue sempre um rumo histórico dos acontecimentos, proporcionando no final da entrevista, uma continuação lógica, um fio condutor para que o segundo entrevistado possa continuar.
No segundo acto do planeta, a Terra já se encontra estável a nível dessas grandes e violentas convulsões. É a hora das alterações dos continentes e Oceanos. Tapponier aborda então o aparecimento dos Oceanos; a infância dos continentes; as alterações dos Pólos; a glaciação; os períodos primários da evolução do planeta.
Depois que o planeta estabilizou desse inferno primitivo, começaram a surgir os primeiros oceanos e, com eles, chegaram as primeiras formas de vida. Todo este processo desenrola-se num período de milhões de anos, ao mesmo tempo, surgem continentes que se movimentam, é o planeta em movimento, começando a compor-se para a forma actual.
Tapponier desenvolve assim a História da Terra para, no final da entrevista e conforme o seu antecessor, a deixar em suspenso de modo a que, o terceiro entrevistado, tenha um fio condutor para a continuar.
Lester Brown continua assim a narração da História do planeta, abordando a proliferação da vida desde a sua origem primitiva até aos dias de hoje, a forma como a vida modificou e continua a modificar a Terra, as florestas que surgiram e desapareceram, os dinossauros que tiveram um longuíssimo período de domínio no planeta até à sua extinção, não esquecendo de explicar o porquê dessa extinção.
Em suma: não é necessário ter-se quaisquer conhecimentos científicos para usufruir deste livro. Este livro é sim uma pequena pérola na forma fácil como explica tantas questões sobre o mundo que nos rodeia. É cativante a forma como as entrevista são dirigidas, sobretudo porque elas são orientadas de forma a formar uma História quase cronológica do planeta.
Para quem se preocupa em saber como tudo surgiu e como se desenvolveu, para quem gosta de aprender e possuir um pouco mais de cultura geral, então acreditem que este livro é de leitura obrigatória. Pessoalmente já o li por duas vezes e n vezes que o abri para ler pequenos excertos sobre determinado assunto.

Eu, Lucifer - Glen Duncan


Há livros que nos vêm para às mãos de uma forma surrealista e completamente por acaso. O livro que me proponho a opinar foi um dos tais onde uma dessas vicissitudes sucederam. Não interessa estar aqui a divagar sobre a forma como descobri o livro na biblioteca (foi tão por acaso que teria imensa dificuldade em contar), o certo é que o acabei por trazer, sabia não ser um livro de missas negras e afins, mas e talvez tenha sido isso que me seduziu: a forma como a história era descrita, pois se forem ler a sinopse, repararão que estão diante de um livro de humor negro, mordaz, irónico, talvez com episódios chocantes, enfim, um livro para descomprimir...
Posto isto e mesmo sabendo que tinha e tenho tantos livros em fila de espera, lá me lancei à leitura deste livro. Inicialmente de uma forma ávida, a meio de uma forma pausada (já ia pegando noutro que deixei a meio) e no fim de uma forma arrastada (foi um suplício acabar a leitura).
Pois bem: Senhores e senhoras, meninos e meninas ou como dizia o outro; portugueses e portuguesas, quero-vos apresentar o Demónio ou Satanás ou Lúcifer em pessoa (atenção, Belzebú não, porque trata-se da segunda figura mais importante da ordem infernal), aliás, ele quer-se apresentar, pois é ele próprio que nos conta a sua história: Uau! Que uindo! Vem a mim Satanás, pensarão alguns, enquanto os pudicos e os beatos dirão: cruzes, credo, canhoto, vai-te Demo! Bah, nunca percebi essa do canhoto, as cruzes e os credos até que passam, mas que raio têm os canhotos a ver com isto?
Então é assim: Olá malta – diz o Lúcifer - eu sou aquele que foi expulso do céu pelo Velhadas que vocês conhecem por Deus. E vai daí, sou um filho-da-mãe da pior espécie. Nem imaginam o que já fiz desde que o mundo é mundo, imaginem que certa vez até levei o Jesusito quase à loucura. É verdade, o gajo dava-me cá uns nervos, mas o tipo era duro... e Madalena que o diga... E a Eva? Xiii, que mulheraço, nossa mãe do inferno!
Lúcifer reina na terra. Comanda um bando de anjos demoníacos que, outrora como ele, pertenceram ao reino dos céus, no entanto, numa bela época há muito distante, Deus ausentou-se para criar o mundo e vai daí deixou todos os anjos sozinhos (gandas malucos). Sem nada para fazerem depressa o tédio começou a instalar-se e Lúcifer, encabeçando um grupo que se revoltou contra este estado de coisas, acabou por fazer algumas coisitas que chegaram aos ouvidos de Deus e é assim que Lúcifer é expulso daqueles reinos. Sem espinhas, pois Deus não é cá para brincadeiras, Ele gosta é de tudo sisudo e de aspecto muito sério. MAIS NADA! E TOCA A AJOELHAR!
Boa, agora ate já havia animais na terra e imagine-se, Deus havia criado um grande jardim onde habitavam dois seres humanos, Adão e Eva... oh Eva, aquela desenvergonhada...
Já podem ver que género de livro é.
Mas e nos dias de hoje, Lúcifer recebe a visita de um anjo muito importante (não me recordo se é Rafael ou Miguel) que afirmam serem portadores de uma importante mensagem de Deus: Deus está pronto a dar uma nova oportunidade de redenção a Lúcifer, com a condição de ele ocupar o corpo de um ser humano durante um mês e, nesse mês, viver e sentir como essa pessoa, como qualquer pessoa, ou seja, deixar aquele estado angélico, omnipresente, e viver e sentir como um comum mortal. Se ele for capaz de se comportar conforme o estipulado, então Deus recebe-o de braços abertos e manda às malvas todas as maldades de Satanás.
Lúcifer rejubila: "O velhadas passou-se!", e vendo aquela hipótese como um género de férias à pala, ele acaba por aceitar e incorpora um corpo de um jovem escritor falhado que está prestes a cometer suicídio e, agindo como essa pessoa, acaba por escrever um livro que é nada mais nada menos que a própria história de Satanás. Aliás nem é bem assim, porque o que ele vai descrevendo é um género da história da criação ao estilo hollywoodesco, para posteriormente tentar adaptá-lo a um guião.
Neste livro, escrito realmente num tom irónico e mordaz, o escritor elabora uma nova narrativa de muitos acontecimentos bíblicos e históricos: Adão e Eva e o paraíso; A forma como Deus criou o mundo; O porquê da sua revolta; A tentação de Jesus no deserto (Jesusito segundo ele); O regime nazi; A inquisição; Seitas.
Mas eu não gostei.
É um livro que divaga imenso entre a ideia do bem e do mal. Lúcifer, mostra-se um "ser" mordaz e irónico. Demonstra que a sua natureza não é maléfica e que a fama que tem apenas se deve a mal entendidos, ou, vá lá, a alguns mal entendidos, pronto, a poucos mal entendidos e a acusações injustas. Explica o porquê da sua revolta e, achando injusto ter sido expulso do céu, resolver empreender todo um comportamento e práticas que vão em sentido contrário às prática de Deus, no entanto é ele próprio que nos vais colocando questões morais que põem, propositadamente, essa bondade de Deus em causa. É um livro que tem um início verdadeiramente empolgante mas que, com o desenrolar da história, vai perdendo interesse, pois torna-se repetitivo, os diálogos e monólogos não nos levam a lado nenhum e no meio de isto tudo existe algo que me decepcionou, imaginem, o comportamento de Lúcifer é terrivelmente pacífico, nada condizente com a sua fama (chega até a levar uma carga de porrada). E eu a pensar que o livro estaria povoado por acontecimentos sangrentos e macabros, transbordando de orgias, deparo-me com um livro sonsinho que faria corar qualquer ser angélico da hoste de Deus. Amém!
No entanto existe um grande contra-senso, é que o livro está recheado de palavrões, a maior parte deles colocados forçosamente e sem qualquer tipo de lógica, no entanto eles estão lá, parecendo que o escritor não teve coragem de evocar acontecimentos mais fortes, mais chocantes, encontrando nos palavrões a única coisa que poderia chocar... pois, ai que inocente o menino é.
Claro que a história acaba por se ler, nem que seja para seguir o comportamento do senhor das trevas enquanto simples mortal, no entanto e embora a crítica britânica tenha feito excelentes críticas sobre este livro e sobre este autor, a mim, não me convenceu e até digo mais, pareceu-me que ele quis imitar o estilo de Ervine Welsh, brilhante escritor escocês autor de livros como "Trainspotting", "Ectasy", "Lixo" ou "Porno", no entanto, fica muito, mas mesmo muito aquém do talento de Welsh.

Não há lugar para divorciadas - Francisco Moita Flores



Francisco Moita Flores, ex-criminologista e actual Presidente da Câmara de Santarém, é um profícuo escritor, dono de uma já admirável bibliografia da qual destaco o seu último romance “A Fúria das Vinhas”.

Admirador do seu trabalho foi com surpresa que me deparei com este título “Não há lugar para divorciadas”, livro publicado em 2003 e que, pareceu-me, é uma espécie de ensaio da sua própria escrita.

A história passa-se em Lisboa trinta anos no futuro a partir do momento em que começar a ler pois, como o autor refere, estes acontecimentos são iguais quer daqui a 30 anos, quer 30 anos após esses 30 anos...

Como facilmente se constata, o livro é imensamente irônico e mordaz, levando facilmente às gargalhadas tal a paródia corrosiva que Moita Flores constrói.

A premissa é básica: mostrar como um mentecapto da nossa sociedade chega a ministro. E isso é algo bastante comum.

Leônidas Tábuas que arranja Távora como nome artístico (ficava mal um político chamar-se Leônidas Tábuas), um “Zé ninguém” que foge da sua aldeia acusado de vender droga e roubar galinhas, vê-se, com 30 anos, atrás de um balcão no bar de um partido político.

Como foi lá parar?

Vivendo de trabalhos esporádicos, Leônidas é convidado por uns amigos para colar cartazes a troco de bom dinheiro. Vendo que era trabalho fácil, Leônidas decide filiar-se no partido, pois os prosélitos do partido tinham sempre a primazia para este tipo de trabalho e havia que aproveitar.

No entanto, sem saber bem como, acaba por conseguir trabalho no bar do partido onde tudo se ouve e tudo se sabe, condição sine qua non para se construir uma carreira política de sucesso.

De influência em influência, o imbecil do Leônidas consegue chegar a deputado de última fila, local onde se metem os imbecis sem opinião e que nunca abrem a boca. Porém não se fica por aqui e consegue chegar a ministro...

Moita Flores escreveu este livro, repito, em 2003, logo, longe de imaginar que um dia seria político. Porém, ele expõe ao ridículo a política e a vaga de interesses que a varre, assim como os motivos que a grande maioria (aí uns 99%) dos políticos tem.

Opinando de uma forma muito objectiva sobre os meandros da política e dos partidos (chega a dizer que na política os inimigos são aqueles que estão dentro do partido, pois são esses que querem o lugar que agora ocupas) e até da influência e interesses da comunicação social, caracteriza de uma forma corrosiva o político comum: um ser estúpido, intelectualmente incapaz, lambe botas, supérfluo, preguiçoso, demagogo, apenas interessado no dinheiro e no poder.

Inclusivamente é corrosivo nalgumas indirectas que vai distribuindo, como por exemplo, quando refere o caso de um capitão que na guerra roubava batatas para vender e que ainda foi promovido a major... penso que todos sabem a quem se destina tal farpa.

Caracteriza também um futuro onde a obcessão pela Al-Qaeda é paranóica, num mundo supervisionado pelos norte-americanos que tal como um big brother, tudo vêm e tudo controlam.

É um livro delicioso, de leitura muito fácil (li-o em pouco mais de 3 horas), sem uma grande construção literária, pois aqui a idéia é mostrar o ridículo, a banalidade, a hipocrisia e a superfluidade dos políticos.

Quer seja agora, quer seja dentro de 30, 40, 50 ou 60 anos.

Mudam apenas as moscas.

Há dúvidas?


Excertos:

”- E o seu genro? Se o senhor não quer ser ministro de Estado, eu insisto para que o seu genro entre neste Governo”.
- Dá-me jeito. O tipo é um sorvedouro de dinheiro e a minha filha vai ficar contente.
- E pensar numa pasta para ele?
- Dá-lhe uma dessas pastas para imbecis. Sei lá, o Desporto, a Educação.
- Para a Educação estava a pensar no Fernandes. Não é estúpido mas é um grande mentiroso. E quando ao Desporto, não sei se é um bom futuro para a sua família.
- Não?
- Como os dirigentes que temos no futebol, precisamos de um ministro igual a eles para que se entendam. Alguém que seja analfabeto, suficientemente ordinário, que goste de contar anedotas, de almoçaradas, que arrote sonoramente e putanheiro. Para alem de tudo isto, é bom que se deixe corromper barato porque senão custa-nos uma fortuna!”




“- Uma espécie rara senhor almirante. Vive da treta, odeia o trabalho e vive da treta. Uma língua alcoolizada, uma imaginação prodigiosa, uma capacidade excepcional para a preguiça e, apesar de profundamente ignorante, fala todas as línguas que o engenho exija e disserta sobre qualquer assunto com mais convicção do que um acadêmico letrado.
- Está a falar dos portugueses.- Não. Estou a falar dos portugueses refinados. O verdadeiro chulo adora mulheres, sobretudo para lhe passarem a roupa e apertarem os cordões dos sapatos, anseia por uma boa briga, pela-se pela intrigalhada, embebeda-se diáriamente, nunca trabalha, aliás, odeia quem trabalha, e é o rei da inveja. A inveja é um pecado português, sabia?”