Excelente, soberbo, espantoso!
”A Voz a Terra” do prof. Miguel Real (pseudónimo do professor e escritor Luís Martins), é um dos melhores livros que li até à data e, considero, um dos livros mais importantes da literatura portuguesa.
Assente em estudos profundos, o prof. Miguel Real oferece-nos uma obra importantíssima que nos ajuda a compreender, não só a actual mentalidade portuguesa, como também compreender todo um período que marcou a História da Europa, sobretudo uma época onde sucessivos acontecimentos serviram de fronteira entre mentalidades.
Júlio Telles Fernandes, português emigrado no Brasil, regressa a Lisboa tendo em mente duas missões: entregar à judia Violante Dias, prima da sua falecida mulher, um anel que vem passando de geração em geração e, segundo, interceder junto do ministro Sebastião José de Carvalho e Mello (Marquês de Pombal) pela independência de Pernambuco.
O livro começa assim com a entrada do navio na barra de Lisboa e, logo ali, surge-nos um fresco da velha Lisboa oitocentista, no entanto uma visão de alguém que há muito está longe e que vê a cidade de uma forma suja, estrangulada sobre si mesma.
Recebido como um herói, sobretudo porque é tido como um homem rico, sendo viúvo, logo um bom partido, Júlio Telles Fernandes irá iniciar um périplo por toda a cidade de Lisboa, inundando-nos de pormenores e curiosidades deliciosas, descrevendo lugares, modos de vida e mentalidades. Tudo isso nos é narrado até ao surgimento inesperado da Voz da Terra, o terramoto de 02 de Novembro de 1755.
E é precisamente o terramoto o centro da narrativa, o acontecimento para o qual convergem o antes e após, ou seja, o terramoto marca de uma forma inegável a transição de mentalidades, uma oportunidade do governo português para lançar o país rumo ao progresso, ao futuro.
Isso é claro, pois é explorado o antes do terramoto. Um país amorfo, rude, fanático, onde existia mais de 200.000 monges, freiras e padres. Mais de um terço de Portugal pertencia-lhes. 500 conventos, igrejas, capelas, ermidas, mosteiros, nem um vintém de impostos pago para o bem comum, era só receber, sacar subsídios, doações e privilégios. A burguesia e o clero ocupavam os lugares chave no governo e demais instituições e era este o Portugal que existia antes do terramoto e foi este Portugal que desaba com a cidade de Lisboa em 1755, acontecimento que, diga-se, está descrito de uma forma magistral.
Ou seja, se quisermos, e eu fui por aí, o terramoto foi bem real mas é também uma gigantesca metáfora da mudança.
É descrito também a condenação e martírio dos Távoras, duque de Aveiro e do Padre Malagrida. É arrepiante a descrição das torturas e execuções, no entanto é notório o propósito de tais execuções. Não foram meras perseguições. A brutalidade das execuções foram um aviso a quem ousasse criticar a nova política do estado português. Antes que o clero e a nobreza pensasse em qualquer tipo de rebeliões (algo normalíssimo na altura), o estado aproveita uma conspiração mal explicada e urdida para executar duas das famílias mais influentes e executa o padre Malagrida que possuía também um alto grau de influência.
O terramoto é assim o clique para uma mudança que já germinava na cabeça do Marquês do Pombal, sobretudo ao nível das mentalidades, marcando também o surgimento do ensino público, o fim da escolástica em favor da filosofia natural, o experimentalismo e o racionalismo, até pelo facto dos títulos serem agora atribuídos ao esforço e não pelo direito familiar, ou seja, a própria renovação da aristocracia.
Um livro impressionante que, recorde-se, venceu o Prémio Fernando Pessoa 2006.
Acreditem, um romance histórico de valor incalculável no panorama cultural português.
Uma nota também para as várias estampas e gravuras do séc. XVIII relacionadas com o terramoto e com vários episódios que permitiram a Miguel Real efectuar várias das suas descrições.
Por fim deixo esta citação de Júlio já perto do fim que, quanto a mim, marca o livro: ”... Lisboa é uma cidade sitiada, ontem uma febre do Império, da Fé, do Evangelho, hoje é a febre da Europa, do Progresso, do Comércio, da Indústria, tudo é esmagado cruelmente em nome da nova missão de Portugal, ser europeu, quanto Paris, como se o nosso modo de ser não fosse também europeu, e, irado, acrescentou, era preciso esmagar as oito canas dos membros do duque de Aveiro e do marquês de Távora pai?, era preciso martelar-lhes o ventre em vez da arcada do peito, para lhes prolongar a agonia?..., será que o Portugal que Sebastião José de Carvalho e Mello quer vingar é assim tão diferente do Portugal de d. João V), não será o mesmo, as atitudes extremadas, a mesma infinita capacidade de fanatização, o mesmo sentido missionário, antes do Império, hoje na Europa? ..., será que a adoração pelo comércio e pela indústria não vieram substituir a adoração pelas ordens religiosas, Jesuítas e Franciscanos”