Para quem já teve a oportunidade de apreciar um romance do mestre Eça de Queirós, deve saber que uma das suas características era o de efectuar, e isso está presente em todos os seus romances, uma crítica social mordaz, irónica mas, no fundo, uma crítica que tentava ser construtiva.
Neste romance que me proponho a opinar, romance esse considerado por muitos como a sua "obra-prima" ou aquela onde ele conseguiu explanar toda a sua corrosiva veia crítica e irónica, o mestre Eça, que publica este romance em 1887, época em que vive em Londres, dominado por pensamentos e teorias agnósticas que faziam então furor entre os intelectuais ingleses, mas, o mestre Eça constrói todo um trama assente sobretudo na observação dos costumes, nomeadamente uma observação que se propõe a narrar os costumes das gentes beatas e a hipocrisia que daí surgia.
Narrado sempre na primeira pessoa, o escritor começa por nos apresentar o seu principal protagonista: Teodorico Raposo, ele próprio o narrador da história.
Toda a narrativa aborda a própria vida de Teodorico. Homem que órfão aos 7 anos, foi deixado aos cuidados da sua tia, D. Maria do Patrocínio, mulher devota, púdica, que se guiava pelos padrões de uma antiga burguesia dominada pela religião. Beata e tremendamente receosa de Deus, a Titi envia Teodorico, aos nove anos, para um colégio interno e, após estadia em Coimbra, Teodorico acaba por regressar a Lisboa anos depois e já doutor. Toda essa fase é já dominada por um carácter devasso de Teodorico que, para além de ser um calão, encontra em tudo formas de diversão.
Feliz de ter um sobrinho doutor e muito crente e cumpridor dos seus deveres para com Deus (Teodorico passa a vida a simular idas à igreja e mostra-se sempre muito devoto em frente da Titi), a tia começa-lhe a dar uma rica mesada, começando assim Teodorico uma vida "farta e regalada".
Bom, mas um problema surge. A tia estava velha, era rica e, pelo que Teodorico se apercebe, ela prepara-se para deixar grande parte da sua fortuna à igreja e, é numa conversa com um amigo do pai que se convence que a única forma de ficar com a fortuna toda da velha é precisamente, ele, Teodorico Raposo, ser mais santo que o próprio Jesus Cristo.
Imaginem!
Assim e também porque passava por uma fase de profunda desilusão amorosa, ele resolve "cravar" uma viagem à sua tia, uma viagem que o irá levar à Terra Santa.
Essa viagem, alegadamente uma peregrinação em nome da Titi, irá transformar-se numa viagem louca, metendo uma amante inglesa em pleno Egipto que lhe faz a vez das idas à igreja..., uma estadia em Jerusalém onde, para além de ele achar tudo horrível, acaba por sair do Santo Sepulcro a praguejar, até a uma carga de porrada que ele leva de um escocês por ser apanhado a espreitar a filha deste enquanto tomava banho.
Hilariante!
Mas, antes desta viagem "santa", onde Teodorico se propunha a ser mais santo do que J.C., ele promete à Titi que lhe irá trazer uma relíquia que é nada mais, nada menos do que um bocado da própria coroa de espinhos. No entanto é um simples galho que irá fazer a vez da coroa, sendo então embrulhado em simples papel pardo, papel semelhante que embrulhava uma garrida e erótica camisa de dormir da sua amante inglesa que, em memória da sua última fogosa noite de amor juntos, oferece-lha de modo a recordar-se sempre dela.
Farto daquela miséria toda, ele resolve empreender a viagem de regresso, sendo então recebido em apoteose pela tia que já o vê como um santo, um modelo de ser humano, pois havia estado nos mesmos lugares que Jesus Cristo.
Agora imaginem o momento em que ele vai dar a tão prometida santa relíquia à sua tia...
Essa entrega irá processar-se de uma forma cerimoniosa. Todos os padres e todas as beatas são convidadas para a ocasião. Tal presente iria fazer furor e criar invejas junto da beatitude da sociedade lisboeta. E quando a Titi abre o embrulho, em vez de um galho da coroa de espinhos, eis que surge uma camisa de dormir de cores garridas, provocante e cheia de rendinhas... imaginem o desenrolar da cena. É deveras hilariante!
Pessoalmente gosto muito deste romance, aliás, eu gosto de todos os romances e contos de Eça. Neste caso ele constrói uma personagem extremamente religiosa e, em contraponto, uma outra mas extremamente liberal. O choque é inevitável. A hipocrisia assola todo o romance, chega a ser incomodativo e irritante tanta sobranceria e hipocrisia. À semelhança do que Eça fez noutros romances, ele descreve uma sociedade completamente dividida: os mais jovens, liberais e não crentes. Os mais velhos, ainda com aquela ideologia da alta burguesia do início do Sec. XVIII, completamente sob o domínio da igreja e dos seus representantes.
Sabe-se que Eça não era um grande simpatizante do catolicismo. Já em "O Crime do Padre Amaro", ele traçava um cenário profundamente crítico, caótico mesmo em relação à igreja e ao seu comportamento, no entanto em a "Relíquia", ele aborda a questão doutra forma, aliás, ele dispara as suas críticas sob outra perspectiva: a do fanatismo religioso. Quanto a mim, este romance complementa "O Crime do Padre Amaro", pois neste caso ele crítica, e é impiedosa a forma como o faz, toda uma sociedade que vivia de aparências... isto é tudo tão familiar nos dias de hoje!!!
Eça de Queirós é, pois, o melhor escritor português de todos os tempos e, não tenho a melhor dúvida, um dos melhores a nível mundial. Se ele fosse norte-americano, francês, inglês ou alemão, penso que seria considerado o grande mestre da literatura universal. Senhor de um estilo único, enquanto narrador conseguiu "pintar" cenários reais da sociedade portuguesa, efectuando também descrições e análises psicológicas dos seus personagens de uma forma intensa.
Embora este não seja o romance que mais aprecio do mestre, penso que a "Relíquia" é aquele onde ele consegue, de facto, expressar todo o seu génio, para além das sublimes descrições que efectua do Egipto (onde esteve para a inauguração do canal do Suez) e Palestina, ele consegue descrever de uma forma minuciosa os costumes da época, os hábitos da sociedade, o modo de pensar e o latente conflito de gerações que se dava na altura.
Gostei muito de ler e comentar este romance, cujo texto podes encontrar no arquivo de Novembro de 2005 no hasempreumlivro
ResponderEliminar:-)
bjo
Desconheço essa opinião mas prometo que a vou espreitar.
ResponderEliminar:D
Raposão era um refinado cretino e Eça entendeu ser contundente através da paródia. Tudo muito cómico e muito trágico. (Mais) um livro genial do autor.
ResponderEliminarO gênio e a fina ironia de Eça está muito presente neste livro. Parabéns pela resenha que está muito bem feita. Abraço do Rio de Janeiro, Brasil.
ResponderEliminarOra viva!
ResponderEliminarLol, sim. Raposão era o mais perfeito imbecil e Eça constrói toda uma teia onde predomina a ironia e, quanto a mim, traduz também o desprezo que Eça sentia pelo catolicismo, sobretudo pelas beatas que, no tempo dele, abundavam em cada esquina.
Um abraço Kovacs e para a Azuki também.
:D
Nuno
Tens razão, Eça de Queirós é dos melhores (se não o melhor) escritor português, e se déssems mais valor à cultura portuguesa seria um escritor universalmente conhecido! Mas pronto, até lá, estamos em Portugal...
ResponderEliminarGostei de "A Relíquia", acho que demonstra realmente Eça em todos os níveis. Concordei com a tua opinião.
No entanto, os meus preferidos continuam a ser "O Primo basílio" e "A Capital". Ainda estou apar ler alguns (incluindo "Os Maias", de que estou ansioso... xD)
De qualquer maneira, os meus preferidos não são, muito provavelmente, os considerados "melhores". mas eu gostei muito.
Um grande abraço!