José Saramago, único Nobel da Literatura português, gera amores e ódios.
Dono de um feitio muito próprio, sem dúvida algo prepotente e pedante, sabe, contudo e como poucos, contar histórias que chocam mentalidades, aproveitando, explorando uma cultura (a portuguesa) provinciana, saloia, anacrónica e supersticiosa.
Saramago é um profundo conhecedor da natureza humana. Dá provas disso em todos os seus romances, exaltando e salientando os vícios, defeitos e virtudes do ser humano.
Assim, sabe como tocar em muitas feridas, pontos sensíveis do ser humano, criando obras polémicas porque simplesmente escreve aquilo que pensa sem receios do politicamente correcto, do “parecer bem” tão tipicamente português e isso choca, cria incómodo, até porque as pessoas se revêem nos seres humanos criados por Saramago.
Em “Caim”, Saramago é apenas e só Saramago na sua melhor forma.
Devido à polémica gerada aquando do lançamento do livro, a expectativa era grande, sobretudo porque tenho no “Evangelho Segundo Jesus Cristo” o seu melhor livro, aquele onde Saramago é mais corrosivo. Fiquei então com a convicção ser este “Caim” do mesmo género. Andei perto, é de facto do mesmo género, mas é mais violento, mordaz, irónico e ostensivamente belicoso.
Quer queiramos quer não, crentes ou não crentes, todos fomos educados à luz da tradição católica/cristã. Estamos imbuídos de valores cristãos que quando os vemos ser colocados em causa pode criar alguma estranheza e algum, ou muito, choque.
Estou convicto que “Caim” tratou-se de uma ajuste de contas entre José Saramago e Deus (com a igreja no pensamento) em que ele, conforme direito que lhe assiste, demonstra toda a sua descrença e asco.
Independentemente das minhas próprias crenças, o certo é que respeito a crença de cada um, a religião de cada um e julgo que em “Caim” José Saramago se excede (ele acabou por admitir precisamente isso), quer na linguagem, quer no propósito.
Eu adorei o livro!
Delirei com a ironia cortante, com a forma como Saramago vai mostrando o ridículo, a insanidade e a impossibilidade da existência de um Deus e dos episódios descritos no Velho Testamento. Mas achei excessivo o ódio impregnado nas palavras.
Há passagens, quase todas, que evidenciam a suprema maldade, a malévola essência do Deus Cristão, que ridicularizam a figura de Deus, porque não obstante o livro conter várias passagens do Velho Testamente (confesso que nunca li a Bíblia, apenas algumas passagens aqui e ali) “Adão e Eva”, “Torre de Babel”, “Moisés quando desce o Monte Sinai”, “O Dilúvio”, entre outros, o que aqui se ressalva é o constante ataque a Deus e o quanto o mesmo não passa de uma mera criação humana ou então de um ser ridículo, fraco, vingativo, maldoso e cheio de defeitos.
O livro é excelente. O diálogo do querubim com Adão e Eva aquando da expulsão destes do Jardim do Paraíso, a narração do Dilúvio, onde Saramago coloca Caim (figura presente em todas as histórias) na barca, é de ir às lágrimas de riso. As conversas de Caim com Deus são soberbas, a forma como o mesmo Caim parte pelo mundo… enfim, um livro que ficará na galeria das grandes obras da literatura portuguesa, mais uma destinada a ser clássico.
“A ideia de Deus é, confesso, o único erro que não posso perdoar ao homem” - História de Juliette ou as Prosperidades do Vício", Marquês de Sade
Classificação: 6