Eu:
“Terrível. Depois de ter lido a Segunda Guerra Mundial de Martin Gilbert, quis
reler "Se Isto é Um Homem" de Primo Levi, autor que esteve em Auschwitz desde
Janeiro de 1944 até Janeiro de 1945, altura em que os russos chegam ao campo.”
O
Outro: “Já ouvi falar desse livro. É mais um relato de um prisioneiro nos
campos de extermínio nazi”
Eu:
“Mas não é MAIS UM! Não é justo considera-lo dessa forma, pois o livro é, acima
de tudo, ou pelo menos é o que sobressai desde as primeiras páginas, uma
reflexão sobre a condição humana”.
O
Outro: “Ok, mas o livro não narra o dia-a-dia dos prisioneiros durante esse
ano?”
Eu:
“Sim, mas é mais profundo. Escrito logo depois de ter sido libertado, Levi
narra a forma como foi apanhado e extraditado para Auschwitz que, na altura,
era um nome como qualquer outro, sem qualquer tipo de conotação. Com ele ia
milhares de pessoas que, um ano depois, apenas duas dezenas estavam vivas. Logo
à chegada ele narra a selecção e o desaparecimento das mulheres, crianças e
doentes.”
O
Outro: “Mas na altura eles sabiam para onde iam essas mulheres e crianças?”
Eu:
“Não… quer dizer, logo desconfiaram, embora e isso é algo intrínseco à condição
humana, quiseram acreditar que essas mulheres e crianças estavam bem.”
O
Outro: “sim... continua…”
Eu:
“Bom, logo aí ele descreve os primeiros aviltamentos. Todos se despiam e
ficavam nus à espera de coisa nenhuma. E a partir desse dia, era apenas fome,
maus tratos, trabalho violento e a sombra da morte que pairava constantemente”
O
Outro: “E como é o dia-a-dia desses prisioneiros?”
Eu:
“Como deves calcular, uma miséria humana. A luta pela sobrevivência aguçava o
engenho e ele descreve a forma como a pouca comida tinha cotação. Ou seja,
roubava-se e trocava-se vários instrumentos pelo pouco pão que tinham direito.
As doenças minavam o campo e, de vez em quando, lá vinha a selecção. É brutal a
forma como ele explica o processo. Bastava o simples gesto do oficial das SS
para que centenas de homens fossem parar ao gás, e eles sabiam que era esse o
seu derradeiro destino.”
O
Outro: “Sim, deve ser impressionante. Sobretudo tentar perceber como foi
possível homens terem sujeitado outros homens a tão cruel e vil destino”
Eu:
“Exacto e essa questão está latente em toda a obra. Levi questiona-se
constantemente sobre isso, sobre os aspectos da alma humana, até que ponto um
homem deixa de ser um homem diante de outros homens. O mal absoluto sem piedade
pela condição humana. É assustador ver que o ser humano pode perder facilmente
a sua consciência, tornando-se numa besta maléfica. E curioso perceber que, ao
longo de toda a obra, ele vai colando alguns dos episódios, ou efectuando
analogias, ao Inferno de Dante”
O
Outro: “De facto. A História da Humanidade está cheia de episódios macabros em
que a condição humana é esquecida, onde a natureza humana acaba por se mostrar
como é violenta e sádica”
Eu:
“E curioso constatar que, depois de ele escrever o livro, o mesmo foi recusado
pelas grandes editoras italianas.
O
Outro: “Estás a brincar!”
Eu:
“Não, a sério! Devia ser ainda resquícios da ideologia fascista que inundou a
Itália e que levou o país a unir-se aos nazis na Guerra Mundial. Mas o certo é
que o seu relato pungente, objectivo e sereno sobre o dia-a-dia em Auschwitz,
foi considerado sem interesse.
O
Outro: “Poderá um homem sobreviver depois de sobreviver a Auschwitz?”
Eu:
“Bela questão, pessoalmente acho que não!”
Vós
que viveis tranquilos
Nas
vossas casas aquecidas,
Vós
que encontrais regressando à noite
Comida
quente e rostos amigos:
Considerai
se isto é um Homem
Quem
trabalha na lama
Quem
não conhece paz
Quem
luta por meio pão
Quem
morre por um sim ou por um não.
Considerai
se isto é uma mulher,
Sem
cabelos e sem nome
Sem
mais força para recordar
Vazios
olhos e frio o regaço
Como
uma rã de inverno.
Meditai
que isto aconteceu.