domingo, 29 de julho de 2007

Crime e Castigo - Fedor Dostoievsky

Fiodor Dostoievski é considerado, e justamente, como um dos grandes escritores russos e um dos maiores escritores universais de todos os tempos. Nascido em Moscovo em 1821, Dostoievski teve uma infância algo triste, caracterizada pela profunda austeridade do seu pai, austeridade essa que se estendia igualmente ao seu irmão mais velho e à sua mãe, que viria a falecer quando ele contava apenas 10 anos.

Na juventude, frequentou a Escola de Engenharia Militar de São Petersburgo. De onde saí em 1843, vindo pouco tempo depois a abandonar a carreira militar para ingressar no mundo das letras. Crê-se que esse entusiasmo pela letras deriva de uma visita de Balzac a São Petersburgo, visita essa que o leva a traduzir “Eugenia Grandet” do célebre escritor francês.

Já como escritor, envolve-se num movimento de líricos, de artistas, que nas suas reuniões são conhecidos por terem opiniões contra o sistema político e em 1849, é preso e acusado de conspiração contra o czar, sendo então condenado a ser fuzilado. Porém, no dia marcado para o fuzilamento e quando já estava perfilado diante do pelotão, veio a informação que o czar havia comutado a pena de fuzilamento para 4 anos de trabalhos forçados na Sibéria. Tal episódeo tem um papel fulcral na via de Dostoievski e repercute-se em toda a sua obra, 4 anos em contacto com outros criminosos foram essenciais para a escrita de “Crime e Castigo”.

Vida difícil, marcada pelo sofrimento moral e físico (tinha constante ataques epilépticos) e pelas dívidas ao jogo que o deixa frequentemente na penúria, publica em 1866 a obra “Crime e Castigo”, livro esse que depois desta pequena mas importante introdução, me proponho a opinar.

É assim que marcado por um estado de angústia e amargura, Dostoievski tem todo um clima ideal para escrever o romance que o levaria à galeria dos imortais, aquele livro onde Dostoievski demonstra que atingiu o total amadurecimento.

Como já referi, os 4 anos passados na Sibéria na companhia de tantos criminosos, familiarizaram-no com o sentimento de culpa, pois ali foi possível conviver com homens que lhe mostraram o crime nas suas diversas facetas. Homens tidos na sociedade como monstros, mas que são capazes de revelar sentimentos humanos. Homens que se transformaram em criminosos devido à injustiça social, mas capazes de mostrarem remorsos que lhes dilaceram a alma, homens que devido à vicissitudes da vida acabam por se considerarem inocentes. Esses factos perturbou Dostoievski.

Assim e em “Crime e Castigo”, Dostoievski apresenta-nos a personagem principal Raskolnikov, que é apenas um estudante com um futuro brilhante. No entanto, a sua difícil situação financeira, assim como a situação da sua mãe e irmã, faz com que Raskolnikov se vá isolando do mundo, deixando logo antever grandes fragilidades psicológicas misturadas com um crescente estado nervoso.

Resolve então penhorar alguns objectos junto de uma velha que, aproveitando-se da precária situação de Raskolnikov, oferece-lhe sempre menos dinheiro do que aquele que era justo. Face a essa injustiça, Raskolnikov vê nascer um ódio pela velha agiota, planeando então assassiná-la. De notar que Raskolnikov vê na velha a face da injustiça social que assalta a Rússia. Dostoievski é brilhante na forma como descreve toda a situação do assassinato. Desde o momento que sai de casa, as dúvidas, as hesitações, a angústia de Raskolnikov, os seus pensamentos que acompanhamos quase como sendo uma segunda consciência de Raskolnikov: “como tudo é repugnante”, “isto é uma loucura, um absurdo”, “serei eu capaz de tamanha infâmia?”, “isto é ignóbil, nojento!”... no entanto, assassina-a de um modo grotesco, sádico e cruel, rouba nervosamente alguns valores e, sem que Raskolnikov o prevê-se , nessa altura entra em casa a irmã da velha que, ao ver a usurária morta, fica em estado de choque, completamente petrificada de terror. Raskolnikov não pensa e mata-a, sem piedade e de uma forma macabra. Duas mortes atrozes que vão agora atormentar o nosso personagem.

Depois de quase ser apanhado em flagrante (Dostoievski faz essa descrição de um modo excitante), consegue fugir sem ser visto e voltar ao seu quarto onde se inicia a sua luta consigo próprio, uma luta psicológica que o irá levar a um estado latente de loucura.

Nesta obra, Dostoievski realiza algumas análises á sociedade do seu tempo. A miséria humana da família Marmaledov (a forma como o pai dessa família sucumbe é atroz, mas aconteciam inúmeros casos na altura) caracteriza a injustiça social. Injustiça essa também explorada na personagem de Svidrigailov, homem sem escrúpulos, chantagista. Dúnia que está pronta a sacrificar a sua vida para o bem estar da família. No entanto, a sua maior análise vai inteirinha para a luta psicológica de um homem que mata mas que não sente remorsos pelo que faz, sente sim a dúvida moral do seu acto, o seu desespero em encontrar um subterfúgio que lhe atenue essa dúvida que lhe dilacera a alma, que o tortura, que o castiga.

Dostoievski descreve todo um processo psíquico do sentimento de culpa. Raskolnikov pensa que a velha é um mal no mundo, que esse mundo apenas tem a ganhar com a sua morte. Como tal, ele tem o direito de impor a sua própria moral, no entanto ele é consumido pela tortura interior. A sua tortura constitui um esforço desesperado para, através do raciocínio lógico, encontrar uma explicação para os crimes, uma explicação que amaine a sua consciência. Será que matar a velha foi um erro? Se ele não se arrepende, então não pode ser culpado por algo que foi merecido. Ele agiu como devia, logo, o seu suplício não tem razão de existir... Mas será que ele tem realmente esse direito, será ele um Deus?... é neste conflito interior que o tortura, que a figura de uma jovem prostituta, marcada igualmente pelo sofrimento, lhe vai falar à sua consciência. Sublime ironia de Dostoievski, numa autêntica batalha entre o bem e o mal.
Uma obra genial!

"chamam-me psicólogo, mas não é verdade. Sou apenas um realista no mais alto sentido, ou seja, retracto todas as profundezas da alma humana.” - Fiodor Dostoievski

Nossa Senhora de Paris - Victor Hugo

Victor Hugo é, ainda hoje, um dos escritores mais considerados em todo o mundo. Poeta, romancista e político, Victor Hugo foi uma das figuras públicas de maior relevância na França do séc. XIX e, como escritor, autor de um dos grandes clássicos de todos tempos e um dos melhores livros que já li: “Os Miseráveis”.

Victor Hugo foi autor de várias obras de cariz histórico, sempre crítico sobre a sua França e sobre a forma como a dirigiam, principalmente após a Revolução, visto que sempre se assumiu como um monárquico convicto.

Publicado em 1832, “Nossa Senhora de Paris” narra a história de uma cigana que fascina todos os homens de Paris pela sua beleza, um sineiro corcunda, um padre que corrompe a sua própria alma por amor à jovem cigana, e um jovem oficial que é o espelho do comportamento da alta sociedade da altura.

E este livro, na minha óptica, e precisamente a narração do comportamento de um conjunto de classes da Paris do séc. XIX, sobretudo a forma fácil como se castigava pessoas, inocentes ou não, a forma como o povo clamava por sangue, a forma como a guilhotina era vista e falada de uma forma tão displicente (era uma festa popular quando havia execuções). E digo isto porque a história é simplória, pequena e com algumas falhas, não históricas, mas falhas circunstanciais, ou seja, existem pedaços na história que Victor Hugo nem se dá ao trabalho de explicar. Pareceu-me também que o livro tem por objectivo, ou se quiserem o autor elaborou o livro também com outro objectivo que é, talvez, o principal tema: a Catedral de Nossa Senhora de Paris ou, se preferirem, a Catedral de Notre-Dame.

O escritor tem a preocupação de ao longo de todo o livro, efectuar uma descrição pormenorizada da Catedral, contar a sua História, criticar as mudanças operadas na Catedral e na própria cidade e é engraçado que essas críticas são feitas a construções ou estilos que hoje em dia, passados cerca de 200 anos, são motivo de reverência e referência. Penso mesmo até que Victor Hugo pretendia escrever simplesmente sobre a Catedral, no entanto e se o fizesse, ele sabia que a mensagem não passaria, correria mesmo o risco do seu livro ser politizado e, idolatrado como ele era, apenas um romance lhe permitiria escrever, descrever e criticar não só esse espaço histórico, assim como a própria comunidade.

A história em si e para quem não sabe, é hoje conhecida pelo “corcunda de Notre-Dame”, nunca me cativou. Achei-a fraquinha, algo desmembrada, chegando a ser algo incoerente.
Entretém, dá-nos conhecimentos interessantes sobre a Catedral e sobre uma Paris já desaparecida, mas não chega para poder considerar esta obra como um Grande Livro.

Macbeth - William Shakespeare

Macbeth apenas foi editado pela primeira vez em 1623, 7 anos após a morte de Shakespeare. Desconhece-se a data em que foi escrita (pensa-se que tenha sido numa data posterior a 1606 devido à narração, na obra, de alguns factos ocorridos nessa altura) e do porquê de ele não a ter tornado conhecida, mas sabe-se que esta foi uma peça que não teve revisões por parte do autor, dadas as anomalias que o texto incerra.
A história que Shakespeare narra é parcialmente real. O poeta imaginou os diálogos e as situações, mas os acontecimentos descritos sucederam-se na realidade. Macbeth era o senhor de Glamis e primo do rei Duncan por altura de 1030. Cronistas da época descrevem o contraste entre Duncan e Macbeth. Enquanto Duncan era um homem pacífico e calmo, Macbeth era violento e cruel. Macbeth era um dos generais do exército de Duncan e a sua fama era tão grande que as forças inimigas tremiam só de ouvir o seu nome. No entanto, Macbeth era muito ambicioso e sabia que se o rei morresse, ele seria o seu natural sucessor e, numa ida de Duncan ao Castelo de Macbeth (era normal na época o rei efectuar uma visita anual aos seus condados, ficando hospedado nos palácios dos seus nobres), Macbeth, protegido pela neblina da noite, assassina o seu primo, apoderando-se assim da coroa escocesa. Esse assassinato, que relembro aconteceu na realidade, pensa-se ter ocorrido no Castelo de Glamis, situado a cinco milhas de Farfair. Curioso verificar que, hoje em dia, este castelo é extremamente famoso por outros factos que apaixonam os amantes do sobrenatural. É que o castelo de Glamis é um dos castelos assombrados mais famosos do mundo... No entanto, não existe a certeza de realmente foi nesse castelo que ocorreu o homicídio, pois uma outra história afirma ter o local, onde Duncan foi morto, sido devastado pelo seu filho Malcolm, sendo actualmente uma das muitas ruínas que abundam na Escócia. Mas estes foram os factos reais. Shakespeare pegou nesta história e deu-lhe magia e imortalidade. Nesta peça, Shakespeare apresenta-nos um personagem que é, na minha opinião, o seu personagem mais violento e controverso. Macbeth revela-se um homem violento, falso, cruel, extremamente supersticioso, vaidoso e narcisista, ou seja, Shakespeare parece aqui tentar efectuar a sua mais intrincada, elaborada e minuciosa análise psicológica de sempre. Macbeth representa quase todas as facetas que um Homem poderá possuir. Em cenários negros e lúgubres, Macbeth surge-nos como um grande senhor feudal, importante chefe do clã, com uma impressionante força e coragem, mas e ao mesmo tempo, com dúvidas que lhe dilaceram a alma, deixando antever um homem cobarde e medroso, inundado por terrores que raiam o limiar da loucura. Ou seja, um claro contra-senso que nos obriga a questionar? Aonde Shakespeare quis chegar, ou o que ele pretendia? Os remorsos de Macbeth são algo que flutuam durante a peça. Todas as cenas em que este sentimento se revela, são extremamente intensas e dramáticas. Shakespeare no entanto surpreende, porque debaixo desse homem vil, consegue criar um outro que demonstra sentimentos humanos muito fraternais. Um homem que na loucura da sua ambição, ganha características que são opostas ao seu verdadeiro (aparente) ser. Embora não seja a minha peça favorita, dada a sua violência e intensidade psicológica, Macbeth é notável pela forma como o trama é construído, pelos cenários recriados e pelos sublimes jogos de palavras entre os personagens. Uma obra grandiosa em que a psique humana é analisas sob diversos aspectos e é devido a essas múltiplas análises que, na minha opinião, mora o busílis da questão anteriormente colocada: Que pretendia Shakespeare com esta peça? Na minha opinião, esta foi a peça que Shakespeare sonhou tornar como a sua obra prima, a obra que pretendeu tornar única, atingir a perfeição. No entanto, penso que o Mestre ou não teve tempo ou não conseguiu fazê-lo. A obra está muito bem conseguida mas nota-se falhas, principalmente na história, na acção. A forma como constrói o personagem é quase perfeito, digo quase porque existem facetas que não fazem sentido, a forma oposta como ele cria dois personagens em apenas um, os jogos que ele cria, acaba por construir uma teia que fica por destruir. Por isso é que, e atenção que é apenas a minha opinião, Shakespeare nunca tornou conhecida esta peça, ele buscava a perfeição e, com Macbeth esteva a um passo de a conseguir. Estarei errado? É possível. Não sou nenhum entendido em Shakespeare, apenas gosto de efectuar análises do que leio, quando vale a pena claro! Na peça, saliento também as inúmeras alusões a factos históricos, alguns deles de grande importância para a monarquia inglesa e escocesa. Shakespeare demonstra que estava atento à sua época e que era um investigador minucioso que nada deixava ao acaso, abrilhantando o seu texto com lendas, superstições e folclore popular. Goste-se ou não, quando mais leio Shakespeare, mais me convenço que o homem era um génio. Ele não se limitou a escrever peças de teatro baseadas em lendas ou Histórias reais, ele foi mais longe. Assente numa escrita melodiosa e numa estrutura textual harmoniosa, Shakespeare efectuou profundas análises à sua sociedade e principalmente aos comportamentos, perfis psicológicos e morais das gentes, deixando-nos um legado valorosíssimo e de uma riqueza tal, que poucos têm sabido dar o seu real valor.

Hamlet - William Shakespeare

Hamlet é, porventura, a melhor obra de William Shakespeare. Pelo menos é aquela onde o autor elabora as suas mais minuciosas análises aos sentimentos humanos, medindo sensações e jogando com sentimentos de uma forma arrepiante. Sentimentos como o amor, a traição, o ódio, o ciúme, a ambição, o medo e a avareza, são transportados e lançados para dentro dos personagens, dando-lhes vida e personalidade.

Mas quando é que esta peça surge?

A primeira edição de Hamlet surge em 1604, no entanto existem muitas dúvidas sobre a real data em que Shakespeare criou esta peça. E porquê? Porque e embora a obra tenha sido editada em 1604, sabe-se que em 1596 era representada nos teatros de Londres uma peça com o nome de Hamlet. Antes, em 1594, encontra-se um Hamlet representado em Newington-Butts. E antes, em 1589, numa epístola que serve de prefácio ao “Menaphon” de Greene, existe uma alusão a Hamlet. Será que Shakespeare escreveu a peça antes de 1589? Muitos investigadores pensam que sim e por duas fortes razões: a primeira razão está presente no próprio texto onde Shakespeare faz alusão a factos que sucederam em 1584 e também porque nesse ano o escritor deu o nome de Hamlet a um dos seus filhos.

Embora pareça que nada tem a ver com a obra, penso que é importante saber a data da concepção da obra, ou, pelo menos, a data aproximada e simplesmente porque é fundamental para conseguirmos efectuar uma correcta análise do texto e entendermos a vastidão da obra.

Posto isto.

Como em praticamente todas as suas obras, Shakespeare não inventou a história. A mesma tem bases históricas muito antigas, confundindo-se factos reais com lendários.

Pensa-se que Hamlet (ou Ameth) tenha vivido dois séculos antes de Cristo. Era filho de Horwendilo, rei da Jutlândia. No entanto não existe consenso em relação ao seu nascimento, pois há quem defenda que ele viveu 500 anos antes de Cristo, na Selândia, onde ainda hoje se mostra o seu túmulo, no parque do Castelo de Marienlust, perto de Elsenor. Mas o certo é que a lenda de Hamlet, amplificada pelos imaginativos e sombrios bardos do norte da Europa, é vista como mais uma fábula do que propriamente um facto verídico, embora muitos historiadores aceitem que existe realmente um fundo de verdade na lenda. Mas o certo é que Shakespeare tomou, de alguma maneira, conhecimento desta lenda e retirou dela todos os materiais para escrever o seu drama.

O enredo de Hamlet respeita os factos da lenda e, como em praticamente todas as obras do Mestre, é muito simples. Um rei que é assassinado pelo irmão que, depois de se apoderar do trono, desposa a cunhada. O filho do rei assassinado, sabe de todo o trama pelo fantasma do próprio pai que lhe pede que cumpra uma missão e é aí que o drama se inicia.

É notável a forma como Shakespeare dirige o drama, a forma como ele expõe os afectos, as sensações e os sentimentos. A construção da obra está genial, Shakespeare consegue humanizar as personagens, dar-lhe a alma e uma forma comovente (leiam a obra ao som de Mozart ou Beethoven, é de arrepiar).

Cheia de superstições, medos, lendas e história lúgubres. A intensidade é espantosa, todo o cenário que o dramaturgo nos apresenta é sombrio, fantasmagórico, arrepiante. A descrição do cemitério é feita de uma forma decadente... “um terreno argiloso, perto da igreja e das habitações humanas, onde nem os fetos conseguem vegetar...”, Shakespeare injecta-nos medo.
O personagem de Hamlet é virtuoso, esplendidamente assombroso. É cativante, genialmente louco e loucamente genial. Um verdadeiro prodígio que nos arremessa pensamentos, dúvidas, certezas e inquietações de uma forma ora dramática, ora cómica e alegre, causando-nos admiração e respeito pela sua mestria oratória. Um personagem cheio de carisma que nos aparta da realidade e nos convoca para um mundo onde as palavras dançam. Pensamentos profundos inquietam Hamlet, perturbando-o, ora dando, ora retirando fundamentos que deseja possuir mas que vão contra o seu espírito. Um homem em luta consigo próprio, sistematicamente pesando nos pratos da balança os prós e contras, num combate lúcido de como e quando executar (a vingança). Arrebatador, assombroso.

A encantadora Ofélia... Oh Ofélia!

Que sensível, virtuosa e poetisa sóis! Ternos são os teus olhos, doce a tua pele, belo o teu ser. Doces cantos vos dediquei e acabastes por me deixar. Oh Ofélia, quais suspiros arrancam minha alma às garras de possessas águias que desmantelam o meu corpo... Oh Ofélia! Que companhia, dama, desejou aquele Rei que habita nas negras águas...

De todas as peças que li de Shakespeare, esta é aquela que mais me toca, a mais melancólica, aquela que mais me enriqueceu. Em Hamlet descobri um ser virtuoso, incapaz de fingir sentimentos, um ser que, atormentado por dúvidas, transpõe-nas com um carácter grandiloquente. Para mim, uma obra que é um símbolo da arte literária e teatral.

Historicamente existem algumas inverdades no texto, ex: na Dinamarca do tempo de Hamlet a religião era pagã, enquanto que na obra de Shakespeare todos estão convertidos ao catolicismo, mas que importa? Perante tal mimo literário tudo se perdoa em face do portento artístico que Shakespeare nos legou, do prazer que sentimos quando penetramos na obra, ao contemplarmos a genial falsa loucura deste príncipe encantador.

Ser ou não ser – eis a questão. Deve uma alma nobre sofrer os golpes da adversidade, ou lutar contra eles? Morrer... dormir... – mais nada. Este sono faz cessar os sofrimentos do coração, as mil amarguras que a natureza legou à nossa carne. Eis o que devemos ambicionar com ardor. Morrer... dormir... dormir. Sonhos talvez... eis o dilema. Que sonhos teremos no sono da morte, depois duma existência tumultuosa?... é isto que nos obriga a meditar, que torna prolongada a vida do infeliz...”

Romeu e Julieta - William Shakespeare

Pensa-se que William Shakespeare escreveu, ou pelo menos iniciou a escrita desta obra em 1591, no entanto a 1ª edição do drama apenas surgiu em 1597, o que denota um extremo cuidado do Mestre com a composição da mesma.
Porém, a história dos amores entre Romeu e Julieta era já muito popular no tempo de Shakespeare. Mesmo antes de o dramaturgo a ter escrito, já ela era conhecida pelo público, logo e ao contrário do que muitos pensam, não foi Shakespeare o verdadeiro autor do trama, este apenas a agarrou para lhe dar uma dimensão fantástica e levá-la à galeria das obras imortais.
Oficialmente a história, ou pelo menos a sua base, teve início em 1535, quando um fidalgo veneziano cria uma pequena narração intitulada: “Julieta, história novamente encontrada de dois amantes nobres...”, no entanto já em 1476 havia surgido uma outra história de um contista italiano, Masucio de Salerno, em que narra acontecimentos muito semelhantes aos de Romeu e Julieta.
Mas o que interessa nesta opinião não é afirmar que não foi Shakespeare o criador deste drama, o que interessa e o que é importante sublinhar e ressalvar, é que foi William Shakespeare, com o seu génio, que lhe deu a alma, a emoção, a paixão, o carácter e o poder dos personagens, criando uma história, um romance intemporal que coloca Romeu e Julieta na base da mais linda história de amor de todos os tempos.
Nesta tragédia, dominada por duas família que se odeiam mortalmente e em que os filhos únicos dos chefes dessas famílias estão destinadas a odiar-se um ao outro, no entanto acabam por se apaixonar um pelo outro e dessa paixão nasce um sentimento tão forte, tão violento, que para sempre ficará nos anais da História.
É difícil afirmar o que mais me maravilhou. Se o perfeito jogo de diálogos poéticos, se o simples mas perfeito trama, se a maravilhosa personalidade dos personagens (a Ama está sublime) ou se o modo rebuscado, romanceado e exagerado como os diálogos estão construídos.
É impossível não nos sentirmos comovidos com as situações, com o imenso e platónico amor que sentem dois seres separados pelo muro do ódio familiar, destinados por isso, a viverem fugidos ou a unirem-se pela morte, pois este é talvez o único caso onde a morte tem o condão de unir e não separar.
Um Romeu sonhador, sensível, de pensamentos nobres. Em contrapartida, uma Julieta apaixonada. Impulsiva, ousada que, dadas as condicionantes da época, fazem deste drama algo de genial, pois a forma como ele se desenvolve, a forma como as personagens que com ele interagem está, simplesmente genial.
Queria também deixar aqui uma nota sobre a edição que li, edição do Jornal de Notícias e traduzida pelo Dr. Domingos Ramos. Segundo o tradutor, esta é a primeira tradução para o português da 1ª edição, da edição original de 1597. As diversas traduções têm seguido a edição de Steevens e Malone do Séc. XIX a qual não prima pela exactidão, ou seguem a de 1599 de Thomas Creede e que serviu de modelo às edições de 1609 e 1623. Portanto é importante realçar o valor desta edição.
Por fim pretendia abordar a questão da veracidade da real existência de Romeu e Julieta e das suas famílias.
Sempre ouvi dizer que Romeu e Julieta haviam existido na realidade, apontando-se a sua existência durante o séc. XIV. No entanto e nesta edição tudo isto é desmentido com base em estudos históricos.
Realmente existe em Verona um túmulo que é atribuído a Julieta, porém este túmulo compõe-se duma simples pedra mármore, sem inscrições, sem data, ornatos nem emblemas. As famílias Montecchio e Capuleto parecem de facto ter existido, mas e enquanto dos Montecchio sabe-se que eram de Veronaa, dos Capuletos nem se tem a certeza da sua existência, pensando-se sem que este era o nome dado aos chapéus que usavam os membros do partido gibelino e, mesmo assim, apenas existem registos do nome Capuleto em Cremona, nunca em Verona. Assim, a história de Romeu e Julieta foi elevada a lenda pelos próprios veroneses, podendo ser considerada, com toda a certeza como muito duvidosa.

Dom Quixote - Miguel de Cervantes

Publicado em todos os países do mundo este é, a seguir à Bíblia, o livro mais lido e traduzido do mundo.

D. Quixote é, inquestionavelmente, um dos monstros sagrados da literatura universal. Considerado em 2002 por cem escritores de 54 países como “O melhor livro de sempre”, D. Quixote é a Grande Obra de Miguel Cervantes, poeta e dramaturgo espanhol, que já na parte final da sua atribulada vida, elabora esta obra que ele próprio sente que irá ser especial, que o levará à galeria dos imortais.

Dividida em duas partes, a primeira escrita em 1605 e a segunda publicada em 1615 (um ano antes da sua morte), segunda parte essa que o autor, aparentemente, não tinha intenção de publicar, apenas o fazendo devido a uma recente edição falsa que continuava as aventuras de D.Quixote, então Cervantes faz publicar a real continuação da obra com um sentido único... Leiam e vão perceber que intenção foi essa.

Mas o que faz esta obra cheia de erros e gralhas, algumas graves e inclusive algumas detectadas pelo próprio Cervantes, ser considerada a Grande Obra, a Grande Referência literária? O tom mordaz e irónico que ele empregou? O modo como o autor retracta a sociedade, pondo os vícios da maior nação europeia do séc. XVII? A eterna luta entre o bem e o mal, personificado nos ataques de loucura e lucidez? Honestamente não consigo responder a tal questão, sei apenas que o livro tem realmente algumas falhas, é enfadonho em alguns capítulos, não é melhor que algumas das Grandes Obras literárias da Humanidade (Lusíadas, Odisseia, Em busca do tempo perdido), mas o facto é que ele exala magia, deslumbra pela beleza dos diálogos e das personagens, das análises a um modo de viver e de pensar.

Mas quem era (foi) D. Quixote?

D. Quixote é um fidalgo que, dono de uma vasta fortuna, a vai desbaratar ao acumular dívidas atrás de dívidas e na compra incessante de livros de cavalaria. É na literatura que ele consegue realizar as suas fantasias e encontrar as soluções para os seus problemas, até chegar ao ponto de confundir a realidade com a ficção, criando assim uma realidade só sua, uma espécie de dimensão paralela, um mundo ilusória, onde se vê e age como um cavaleiro andante em busca de aventuras.

Assim e já com uma idade avançada, convence um criado da família a ser seu escudeiro (Sancho Pança) que, levado pela loucura e pelas promessas de riquezas do amo, decide abandonar a mulher e os filhos e partir com o seu amo.

E é precisamente nas loucas aventuras e desventuras de D. Quixote e Sancho Pança que Cervantes nos delicia com as suas irónicas análises à sua sociedade. Por exemplo, no célebre episódio dos moinhos de vento, onde D. Quixote carrega contra os moinhos, pensando tratar-se de gigantes, podemos observar o comportamento de Sancho quando confrontado com algo fora dos padrões normais. Para além disso, D. Quixote quando vê que se engana, procura sempre arranjar desculpas para os factos, empregando a responsabilidade nos seus inimigos imaginários que, usando de magia, lhe toldam a vista...

Outro exemplo mordaz, dá-se no episódio onde D. Quixote toma dois rebanhos de ovelhas por dois perigoso e violentos exércitos inimigos. Cervantes é impiedoso na crítica à ganância do e pelo poder, à atitude xenófoba e de desprezo demonstrada pelo povo face aos mais fracos, á falta de humildade e de honorabilidade daqueles que apenas bajulam quem tem dinheiro e poder... tão actual, não acham?

Mas será que D. Quixote é simplesmente um louco?

Não! D. Quixote, como antes escrevi, cria um mundo ilusório onde a loucura surge a espaços e apenas quando confrontado com a cavalaria andante. D. Quixote é um sábio, um filósofo e um poeta magnífico, pois são inúmeros os poemas que banham o livro, dando-lhe uma extraordinária dimensão artística.

O mundo achincalha-o, humilha-o sempre que pode, mas D. Quixote revela-se um ser humano bom que, assente em sólidos valores românticos da cavalaria, tenta proteger os mais fracos, os pobres e os oprimidos, sempre com a sua donzela na mente e é em prol dela que luta.

Toda uma narrativa sublime que nos proporciona momentos de deleite literário. Diálogos cheios de metáforas que são construídos com um sentido claro, numa verdadeira alegoria ao Tempo de Cervantes.

Saliento também as novelas que o autor vai intercalando na primeira parte com a aventuras de D. Quixote. Pessoalmente apreciei imenso essas pequenas novelas, onde está bem patente o modo de vida que se levava naquele tempo e, pensar que essas novelas tenham sido histórias biográficas do próprio Cervantes é como ler uma Biografia de Cervantes escrita por ele próprio. Curioso!

Resumindo: Uma obra indispensável em qualquer biblioteca e de leitura obrigatória para qualquer pessoa que aprecie a boa literatura. Uma narrativa a roçar a perfeição artística apenas ao alcance de um grande génio que foi Cervantes.

Analisando mais profundamente a obra, descobre-se falhas graves, principalmente no campo da narração de acontecimentos onde Cervantes, por vezes, se esquece do que escreveu no capítulo anterior.

Nota final para a excelente tradução da edição que li (Jornal de Notícias) dos viscondes de Castilho e de Azevedo, simplesmente sensacional.

- “E a vós, alma de cântaro, quem vos encasquetou na cabeça que sois cavaleiro andante e que venceis gigantes e prendeis malandrinos? Voltai para vossa casa e educai vossos filhos, se os tendes, tratai da vossa fazenda, e deixai-vos de andar vagando pelo mundo, a papar moscas e fazendo rir todos os que vos conhecem e vos não conhecem. Onde é que vistes que houvesse ou haja cavaleiros andantes? Onde é que há gigantes em Espanha ou malandrinos na Mancha? E Dulcinéias encantadas, e toda a caterva de necesades que de vós se conta?

- Ouviu D. Quixote, muito atento... pôs-se em pé, e disse...

Vinhas da Ira (As) - John Steinbeck

No dia 24 de Outubro de 1929 dá-se um crash na Bolsa de Valores de Nova Iorque, esse dia ficará conhecido por Sexta-feira Negra. Seria o início da Grande Depressão que devastou a sociedade americana e teve também repercussões violentas por todo o mundo. As primeiras vítimas dessa depressão, são os proprietários rurais que viram as suas exportações diminuírem até à quebra total. Na impossibilidade de rentabilizarem os campos, esses proprietários viram-se também na impossibilidade de liquidarem as dívidas que haviam contraído no período de euforia, vendo então os campos serem hipotecados pelos bancos. Com as terras confiscadas e sem meios de sobrevivência, esses proprietários não tiveram remédio que abandonar essas terras e partir em busca de um presente e um de futuro melhor.
Essa crise no campo reflectiu-se nas cidades e depressa o desemprego começou a subir, pois milhares de empresas foram à falência. De realçar que em 1933 havia 14 milhões de desempregados nos E.U.A..
E é precisamente a Grande Depressão o principal tema desta obra.
Obra perturbante, narra a epopeia da família Joad, uma família rural americana que vê as suas terras confiscadas pelo banco devido ao incumprimento do pagamento da dívida. Assim e possuindo apenas um velho camião, iniciam uma viagem apenas de ida com destino à Califórnia em busca de trabalho.
Curioso verificar que muitos críticos literários encontram semelhanças entre a epopeia dos Joad e o Êxodo bíblico. Desconheço se Steinbeck o fez propositadamente, mas o certo é que as semelhanças existem, pelo menos no objectivo final: A terra prometida.
Nessa odisseia, lado a lado com outras milhares de famílias que procuram alcançar os mesmos objectivos, Steinbeck efectua uma análise profunda a essa sociedade, quer na componente psicológica das personagens (povo), quer na componente política.
Em todo o livro existe uma clara intenção e preocupação pelo detalhe, sobretudo no que respeita às relações humanas e é aí que o romance ganha a sua verdadeira dimensão. Basta ver que perdem a terra que lhes dava o sustento, são escorraçados e mesmo assim nunca desistem. Por muitas contrariedades que surjam, e pelo menos dois membros da família morrem e são enterrados no caminho, esta família nunca vira a cara à luta e está sempre na disposição de lutar, na disposição de contrariar os abusos e as humilhações que constantemente lhes infligem.
É extraordinário a forma como Steinbeck aborda o problema. A força dessa família e de tantas outras na mesma situação sobressai, sentimos essa força e conseguimos compreender o sofrimento dessas almas, no entanto, ainda existe espaço para a amizade, para a solidariedade, a ideia de comunidade está sempre presente, essa força interior que simboliza um ideal de nação.
Uma obra muito importante no panorama literário, que deve ser lida com muita calma, sendo certo que o leitor deve possuir alguns conhecimentos da história dos Estados Unidos dessa época, considero mesmo a obra de leitura não muito acessível, pois é efectivamente um romance cheio de símbolos políticos onde Steinbeck tinha efectivamente segundas intenções quando o escreveu.
"Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as Vinhas da Ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima."

Cem Anos de Solidão - Gabriel Garcia Marquez

Todos nós temos aqueles livros que consideramos especiais. Uns pela construção narrativa, outros pela história, outros ainda pela mensagem que nos transmitem ou pelo que ensinam, mensagens e ensinamentos esses que podem alterar toda uma filosofia de vida, um modo de pensar, uma forma de olhar o mundo que nos rodeia ou outra percepção da História.

Como toda a gente, tenho eu também na memória algumas obras que tiveram o condão de me proporcionarem algumas das sensações/percepções acima mencionadas. Obras que recomendo sempre que posso, tentando contudo explicar esse fascínio ou, pelo menos, onde e porquê considero essa obra especial.

Posto isto, apenas espero que no fim desta opinião tenham compaixão de mim e não me crucifiquem, pois muitos irão certamente dizer "cobras" e "lagartos" desta opinião e especialmente da pontuação que atribuo.

A legião de fãs do "Cem anos de solidão" são mais do que as mães. Há 2, 3 anos li este famoso livro e sinceramente não gostei. No entanto algo ficou a moer cá dentro. Fiquei deveras incomodado comigo mesmo pelo facto de tanta gente adorar este livro e eu não ter gostado, assim, resolvi relê-lo esperando vir a entender a beleza e magia que tantos apregoam.

A história em si é extremamente confusa e surrealista. Entrar no mundo de Macondo é difícil dada a imensa irrealidade de tudo o que a rodeia.

Uma vila no meio de nada é cenário para a história de uma família que se confunde com a origem da própria vila. Numa aura mágica, num tempo indefinido e, ao mesmo tempo longínquo, Macondo está praticamente fechada ao exterior, sendo apenas um grupo de ciganos que faz uma pequena e frágil ligação a esse mundo exterior. É neste pedaço de terra, quase uma terra de ninguém, onde vive a família Buendía, figura central da história. Uma estranha família que tem o faculdade de gerar pessoas com algum dom estranho e todos eles com um caminho tortuoso pela frente, caminho esse que tem um ponto em comum: a solidão.
Nesse família existe uma estranha e curiosa particularidade que é, talvez, a imagem de marca do romance: todos têm os nomes iguais, ou seja, os netos herdam os nomes dos avôs/avós, existindo assim um cruzamento confuso de personagens onde facilmente perdemos a noção de quem é quem.

Curioso também verificar que Garcia Marquez menciona várias vezes personagens que já faleceram, parecendo-nos assim que todos eles são imortais (penso até que é propositado), e que todos eles têm um pedaço de um outro e um pedaço de todos.

Como elo familiar em quase toda a história, surge a matriarca (Úrsula) que vê nascer e morrer praticamente todas as gerações.

É uma história que combina diversos elementos: os problemas sociais e políticos, o progresso inexorável, a vida quotidiana, a história de um povo, a morte, o amor, o sobrenatural, o humor e o incesto. Nessa combinação, é realmente um livro espantoso, porque consegue associar todos estes elementos de uma forma magistral, mas e ao colocar a realidade numa categoria onírica, num mundo absurdo onde a lógica é propositadamente deixada de parte, fez com que não conseguisse apreciar a obra e nem compreende-la na sua natureza, ou seja, não compreendo o porquê de esta ser considerada uma obra-prima da literatura.

De todo o romance, gostei essencialmente da parte final onde Marquez demonstra o seu jeito para a escrita, mas o resto do livro foi-me penoso ler, dadas as inúmeras vezes que me perdi no vasto rol de personagens e no vasto rol de acontecimentos absurdos, embora admita que a personagem de Melquiades é um perfume que Marquez nos oferece de princípio ao fim.

Resumindo e concluindo: Um romance que não me agradou e nem me proporcionou momentos de lazer. Um mundo surrealista, onde o passado se mistura com o presente de uma forma quimérica, parecendo que estamos numa outra dimensão. Uma imensa galeria de personagens com nomes idênticos que aumentam ainda mais a confusão e onde a trajectória do destino se repete geração após geração. De notar também, confesso, não ser este o género literário predilecto.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Ensaio sobre a Lucidez - José Saramago

José Saramago, aquando do anúncio deste novo título afirmou ser este um livro capaz de provocar um escândalo dos diabos e que teria o condão de provocar mais celeuma que o "Evangelho Segundo J.C." e mais, que se o livro não provocasse um abanão na opinião pública, significaria que os portugueses estariam a dormir. O que ele decerto se esqueceu é que grande parte dos portugueses não têm qualquer hábito de leitura nem querem saber nada de política, logo e por muito que ele escreva, há muita gente que nem sabe quem é José Saramago (claro que exagero...).

Muito honestamente, penso que a pedrada lançada não tem o poder de fazer qualquer mossa. E afirmo isso porque e após ter efectuado uma análise à obra no seu conjunto, acho que as críticas irónicas lançadas pelo escritor aos podres do nosso sistemas política e social não me surpreenderam em nada, ou seja, quem estiver minimamente atento à nossa realidade da nossa sociedade em todas as suas vertentes, não precisa que venha nenhum Saramago, qual iluminado apontar o dedo, e quem se estiver a borrifar por essa realidade, também não se estará ralando por perceber aonde o escritor quer chegar com as metáforas que vai criando.

A obra em si está longe de ser o melhor de Saramago. Claro que o estilo está lá, inclusive penso até que este é dos mais irónicos e mordaz trabalhos do escritor, mas e na minha opinião, ele comete um pecado que me surpreendeu. Ele simplesmente utiliza a mesma fórmula que utilizou em "Ensaio sobre a Cegueira", aliás, existem tantos pontos em comum que este quase que acaba por ser um género de continuação do anterior, pelo que e quem quiser ler este livro, é quase obrigatório ler o outro.

Quanto à história, Saramago situa-nos numa cidade qualquer (diz ele, mas as semelhanças com Lisboa são mais que muitas) em dia de eleições autárquicas. O meio político é composto apenas por três partidos: o da Direita, que está no poder, o do Centro e o da Esquerda (são em tudo semelhantes ao PSD, PS e PCP), e logo aí é notório que algo de anómalo se passa, pois apenas às 16:00 em ponto as pessoas começam a afluir às urnas. No final do dia, sabe-se o resultado e, para grande espanto do país, 75% dos votos são em branco. Assim e como prevê a constituição, as eleições são repetidas 8 dias depois. Desta vez, debalde, 83% dos votos anunciam brancura total, isto é, apenas uma repetição e confirmação dos resultados anteriores.

A partir daí assistimos ao desconcerto do governo e do próprio presidente da Republica que chega a culpar o povo pelo estado calamitoso em que se encontra o país e que, coitados dos políticos, que sempre foram tão fiéis e que jamais mereceram isto... Mas o governo, através do Primeiro Ministro, anuncia uma investigação profunda às causas ou aos causadores desta anormalidade e posteriormente, como tudo sai furado, acabam por debandar, em alegre caravana, a cidade. Aí verifica-se uma manifestação de satisfação do povo ao ver o governo fugir e é engraçado a forma como Saramago brinca com o acontecimento. Curioso também quando e durante a investigação, todos aqueles que são questionado sem votaram em branco, afirmarem negativamente. Faz lembrar as pouquíssimas pessoas que admitem ter votado PSD nas últimas eleições...

Adiante.

Mas e sem querer entrar mais profundamente na história, posso dizer que temos um Ministro da Defesa altamente radical, mesmo a roçar o fascismo (Paulo Portas escarrago); um Ministro do Interior que faz o que o Primeiro Ministro não quer; um Presidente da República que gosta de atirar uns bitaites mas que anda a reboque do Primeiro Ministro; um estado de sítio que suspende os direitos dos cidadãos mas como também ninguém tem o saudável direito de exigir o regular cumprimento dos direitos que a constituição lhes outorga, nem reparam que foram suspensos; numa cidade que se transforma numa prisão onde ninguém pode sair.

Depois e numa reunião de Ministros, alguém se lembra de comparar esta epidemia à epidemia ocorrida 4 anos antes e é aqui que a colagem com o "Ensaio sobre a Cegueira" acontece. O voto em branco pode ser uma manifestação de lucidez, um contraponto com a cegueira que grassa por todo o lado? Saramago revela assim a sua mensagem: "Atenção, tudo está mal, a nossa democracia está viciada, o voto em branco é uma arma democrática que possuímos para impedir os políticos de continuarem a brincar connosco...". Terá esta mensagem efeitos práticos?

Partindo de uma denúncia, entram na acção as personagens do "Ensaio sobre a Cegueira" e é o próprio governo que tenta fazer da mulher do médico o bode expiatório desta epidemia, o líder dos brancosos, a chefe desse grupo de terroristas que põem em causa o sistema democrático. Essa tentativa de criar um bode expiatório, parece-me uma indirecta ao facto de quem está no poder (independentemente do partido), procurar culpabilizar sempre os antecedentes de tudo o que corre mal.

O final é em beleza. Assiste-se à tentativa de assassinar os opositores e é claramente uma abordagem às variadas tentativas de acabar com os adversários políticos... (não quero entrar em mais pormenores.) Perdoem-me se contei demais!

Em suma e embora sejam possíveis várias ilações, penso que Saramago não descobriu a pólvora. Se o objectivo dele era alertar consciências face ao estado deplorável do nosso sistema democrático, penso que não vai muito longe. Há muito que as pessoas se divorciaram da política e dos políticos, há muito que esses são vistos como oportunistas, mentirosos e charlatães, há muito que os mesmos "baixam as calças" nas campanhas eleitorais para depois nos tratarem com desprezo e também, porque em o "Ensaio sobre a Cegueira" Saramago é mais corrosivo na forma como critica a sociedade em geral.

Depois de ter acabado o livro, fiquei com uma sensação de desconforto e porque senti-me um pouco desprezado pelo próprio Saramago e afirmo-o porque ele cai no erro de agir de acordo com o que critica, ou seja, ele joga connosco e depois larga-nos desemparados... note-se que ele cria alguns cenários muito interessantes e que depois não explora, pura e simplesmente deixa-os cair sem se preocupar em explicá-los, se quiserem, ele tece uma teia sendo depois incapaz de se disvencilhar dela. Fica assim no ar algumas questões que ele cria e que depois não responde.

Gostei muito do final e da forma como dois cegos perguntam um ao outro se ouviu alguma coisa (não é nada comigo, estou aqui para ver a bola, percebem?). Esta é a minha análise, como disse anteriormente, este livro tem a faculdade de se poder tirar várias ilações e aceito, acredito e é natural que muitos as tenham e que discordem comigo, no entanto, estava à espera de mais e melhor e, depois de tantas entrevistas, não escondo que fiquei decepcionado.

Crime do Padre Amaro (O) - Eça de Queirós

Como afirmou Miguel Torga: "Grande Eça! Arrancar desta terra um tal romance, parece ser obra de Deus!", eu assino por baixo, embora, na minha opinião, esta não seja a obra-prima do mestre.
"O crime do Padre Amaro", segundo o próprio Eça, começa a ser concebido em 1870 quando ele é nomeado administrador do Concelho de Leiria. Enviado para aqueles ermos, Eça sente-se infeliz e deslocado no meio de tanta beata e mal dizer. Aos poucos e devido à sua distinta posição assim como devido ao seu excelente poder de observação, começa a tomar conhecimento da vida privada de algumas pessoas e o que sabe apenas o inspira para o romance-bomba que está prestes a conceber.
Este era o seu romance predilecto e aquele onde Eça mais trabalhou em posteriores revisões. Inicialmente inscrito no seu projecto "cenas da vida portuguesa", este livro será aquele onde ele atinge o apogeu da ironia, efectuando não só uma crítica a uma gente de uma cidade específica, como também à própria sociedade portuguesa e ao compadrio entre a igreja e o poder. Assim como é curioso verificar a expressão do seu ideal anarquista (a destruição do poder vigente) que, dizia ele, serviria para instituir o estado socialista. De notar que foi um romance muito criticado na época e posteriormente proibido a sua circulação no regime salazarista.
Amaro Vieira é um padre que chega a Leiria para ocupar o lugar em aberto de pároco, sabemos entretanto que ele nunca teve qualquer vocação e que é por influências politicas que ele consegue o lugar.
Através da ajuda do cónego Dias (macaco velho que havia sido mestre de Amaro no seminário), ele consegue arranjar um quartinho patusco e baratucho numa casa de uma pessoa "amiga". Acontece que a dona dessa casa, a senhora Joaneira, tem uma linda e prendada filha, ser angelical e virginal que é alvo de desejos ardentes de tudo o que é homem, no entanto como a menina é muito pura e pudica, mantém-se no seu cantinho e não dá trela a ninguém.
O ciclo amoroso está lançado com a estadia do "raio" do padre. Olhares libidinosos entre Amélia (a pura menina) e Amaro é o começo de uma paixão proibida, onde encontros muito quentes acabam na cama (alcova) do padre (lá se vai a pureza).
Mas Eça não se fica por aqui e lança nova carga.
Amaro apanha o cónego Dias com a boca na botija (literalmente) descobrindo-o em ardentes jogos sexuais com a Srª. D. Joaneira (outra alcova) e chega-se a uma brilhante conclusão: "São todos do mesmo barro. Um anda com a mãe e o outro conforta a filha!". Elucidativo da ironia e da mordacidade de Eça de Queiroz.
É neste ambiente de saudável putaria (perdoem-me o termo), com outro pormenores à mistura, uns quentes e outros não tanto, pois nem só de quentura vive o romance e Eça também tinha que descansar, mas e como ia dizendo, que... oh deuses, não é que Amélia, esse ser virginal e doce calha engravidar? Quem brinca com o fogo... será possível tamanho descuido ou será que pensavam serem as reencarnações de José e Maria que só com a ajuda do espírito santo conseguiram lá chegar?
Começa então o pesadelo de Amaro e surge a verdadeira face desse homem ou deverei dizer, dessa besta que chega a rezar a Deus para que Amélia e o bebé morram... bem feito era que Deus fosse surdo!
E mais não digo sobre a história porque daí a bocado tiro o interesse da mesma a quem a quiser ler.
Apenas chamo a atenção para a forma magistral como finda o romance, onde o conde de Ribamar proclama a tranquilidade, superioridade e virtuosidade de Portugal diante dos tumultuosos acontecimentos que ocorriam em Paris. È a facada final de Eça.
Um romance considerado por muitos críticos como o melhor de Eça de Queiroz dada a natureza real que o escritor emprega na narrativa, sabendo-se que efectivamente Eça baseou-se em pessoas reais para criar as suas personagens.
Para mim foi um romance que me deu um imenso prazer ler por ser espantosamente irónico e mordaz, ainda mais por ter tido a coragem de ter enfrentado e confrontado a igreja e o seu imenso poder, assim como as suas relações um pouco... digamos, duvidosas...
Sem dúvidas um dos grandes romances da nossa literatura, porém, está longe da beleza e do fulgor dos "Maias".

Crónicas do Senhor da Guerra - Bernard Cornwell

Esta opinião visa toda a obra no seu conjunto não especificando nenhum dos volumes em particular.

Esta é uma obra que já reli por diversas vezes.. Na minha primeira leitura, há uns 10 anos, fui levado por um entusiasmo e um fascínio tão grande que e durante muito tempo, considerei esta obra como a da minha vida, aquela que recomendava sempre que me solicitavam alguma opinião sobre bons livros (ainda recomendo).

Senti-me novamente maravilhado e, embora agora não a considere como a obra da minha vida (Guerra e Paz é inultrapassável... acho!), tenho-a como uma daquelas que guardo gratas recordações pelos excelentes momentos que me proporcionou.

Quanto ao conteúdo:

A lenda arturiana, tal como ela hoje é conhecida, jamais foi comprovada, aliás, a existência de Artur é ainda uma incógnita havendo várias incongruência factuais à roda do nome e da real existência da personagem. No entanto, Bernard Cornwell efectua uma brilhante investigação histórica do tema, abordando frontalmente a questão e, em todos os três volumes, ele tece considerações sobre a época e os factos em que ele se baseia. Classifica documentos e nomes e não tem qualquer problema em desmistifcar essa lenda, nunca escondendo porém ele próprio ser um fã da mesma.

Assim Cornwell cria uma personagem fictícia para narrar a história de Artur. Século Quinto, Derferl Cardan, agora monge e já com uma idade avançada, escreve em língua saxã, a pedido da Rainha Igraine, as suas memórias de Artur, o Rei que Nunca Existiu, o Inimigo de Deus. Somos então levados pelas palavras de Derfel num caminho que se vai interligando com o de Artur e de outras personagens também míticas.

Um dos factos que mais me apaixonou, é o sentido violento e real que Cornwell imprime na narrativa e a quase ausência de magia. Embora a magia esteja quase sempre presente, nem que seja pelas imensas superstições, Cornwell dá-lhe sempre um tom soft, dando inclusivamente explicações a muitas manifestações ou brincando mesmo com elas.

Assente numa escrita simples e fluída, ele descreve minuciosa e detalhadamente as crenças, os usos e costumes daquelas gentes, da sua forma de pensar e de agir e, fundamentalmente das batalhas. Confrontos violentos e sangrentos, transporta-nos ao local de uma forma sublime onde, por vezes, parece que tudo aquilo está realmente a acontecer, todos aqueles gritos, os escudos que embatem violentamente uns nos outros, os cavalos que, assustados, espezinham homens em agonia que sufocam no seu próprio sangue, vomitado e excrementos. Até os cheiros nos faz sentir; a própria sensação de medo que os soldados sentem antes da batalha (quase todos se encharcavam em hidromel para ganharem coragem) e é arrepiante aquelas descrições daqueles momentos de ânsia, aquele compasso de espera onde os guerreiros se preparam para entrar na batalha, onde um homem pode estar a viver os seus últimos minutos ou um dia de glória. Onde a canção de Beli Mawr é cantada em uníssono pelos guerreiros bretães que e com a ajuda dos seus deuses, reúnem coragem para enfrentar o exército oponente.

Fabuloso!

Aqui a távola redonda não passa de uma mera mesa de madeira suja de comida e vomitado (palavras de Derfel); Excalibur jamais esteve cravada numa pedra; Guinevere é uma mulher ambiciosa que leva demasiado longe essa ambição; Lancelot... bom, Lancelot não passa de um reizinho arrogante, que se revela um cobarde, um mentiroso e um traidor; Merlin passa grande parte do tempo ausente, tendo aparições fulminantes e empolgantes, embora tenha também um papel determinante; Morgana... não é nada semelhante aquela Morgana que a lenda refere.

Uma história que aborda tempos violentos varridos por guerras e indefinições religiosas, sendo nítido os ventos de mudança que se faziam sentir, onde o fim do paganismo e o surgimento do cristianismo é uma realidade. É curioso também verificar uma constante crítica que o autor vai fazendo ao cristianismo em grande parte da obra. É notório o papel desestabelizador dessa religião na região e, grande parte dos conflitos, são gerados por interesses cristãos. Ou seja, é claro que o papel do cristianismo foi o de dividir para reinar, o de impor e obrigar a seguir uma ordem, o de matar qualquer oposição ou qualquer Deus ou religião que fizesse sombra ao cristianismo.

Em suma: Uma história fantástica que recria uma época longínqua onde a espada era a lei mas onde ainda existia lugar para a verdadeira amizade. Uma obra que aconselho a todos e que no fim nos deixa tristes por acabar e que também acaba por saber a pouco, pois Derfel deixa por contar como e onde acabaram certos personagens. Mas o certo é que estamos tão dentro da história, tão compenetrados que é-nos difícil acreditar e aceitar que já acabou.

Um romance histórico que me levou a adoptar este estilo como o meu preferido.

Jogador (O) - Fedor Dostoievsky

Neste romance, escrito em apenas 15 dias, Dostoiévski cria Alexis Ivanovitch, preceptor de uma abastada família russa que, em jeito de memórias, relata os acontecimentos em que se viu envolvido numa cidade alemã chamada Ruletemburgo. Á roda dessa família, giram outros excêntricos personagens que acabam por ter alguma relevância em toda a acção. Mlle. Blanché, amante do general (patrão de Ivanovitch), mulher interesseira que gosta de se expressar na sua língua materna (francês). Um inglês que tem um papel algo dúbio, até para o próprio Ivanovitch. Outro francês (De Grillet), personagem sui generis na sua forma de agir e, finalmente, uma velha avó de quem todos esperam notícias da sua morte e que, repentinamente, resolve aparecer em Ruletemburgo para espanto de todos, principalmente do general.
E é nessa senhora que tudo verdadeiramente começa. A velhota pede a Ivanovitch que lhe mostre a sala da roleta e que lhe explique as regras e, ele ao fazê-lo, dá oportunidade à senhora para jogar... depressa ela se vicia no jogo.
É o ponto de partida para o fascínio da roleta. A ânsia dos números que saem, o perde e ganha de dinheiro, o convencimento e certeza que "é agora que sai", o bichinho que os impulsiona, que os atira para a mesa, que os leva a sonhar com riquezas inimagináveis.
Jogador inveterado da roleta, Dostoiévski faz deste romance uma espécie de exorcismo de um vício que quase o levou à ruína. Inclusive, sabe-se que este romance foi escrito para pagar dívidas de jogo. Aqui e baseado numa experiência pessoal, ele faz-nos sentir toda aquela ânsia, toda aquela obsessão, aquela compulsiva necessidade de jogar, da crença que vai sair, de que por muito que se ganhe, é sempre possível ganhar mais, e mais, e mais... Todas essas sensações, a descrição de tal vicio está brilhantemente explicado e é engraçado também verificar a semelhança entre este vício e o vício da droga. Embora noutra perspectiva, a semelhança é notória. Também de notar a forma clara, aberta e honesta como Dostoiévski descreve todo esse sentimento, demonstrando que este vício é um problema muito sério.
Nesse aspecto, o livro ganha claramente importância e relevância dada a forma como aborda a questão. Quanto ao resto e olhando para a estória que gira em torno do assunto, penso que nada de positivo traz, descrevendo um arrastar das personagens acima mencionadas, cheia de relações humilhantes e absurdas.
Negativo também o exagero das frases em francês. Para quem não tenha conhecimentos de francês, é extremamente complicado seguir o texto, ou se quiserem, alguma partes que acabam por ter alguma importância na estória.
Em suma: Uma viagem guiada a um mundo de vício e perdição. A um mundo ilusório, uma doença onde o prazer se confunde com a dor, descrito por um homem que sofreu na pele os malefícios desse mal.

Canto dos Pássaros (O) – Sebastian Faulks

França, 1910, Stephen Wraysford é enviado pela sua empresa a França a fim de observar junto da família Azaire o negócio de texteis desta, sobretudo no sentido de perceber o processo de fabrico.

Instalando-se na casa dos Azaire, Stephen inicia o seu estudo da indústria ao mesmo tempo com que vai se relaconando com todos os membros e amigos da família, contudo esse ralacionamento torna-se mais íntimo com Madame Azaire, Isabelle, que como era algo comum na época, havia sido obrigada a casar com um homem rico e mais velho, não tendo por isso um casamento pleno e de acordo com o que a força da juventude exigia...

Nos seus 20 anos, Stephen conquista por completo Isabelle (8 anos mais velha), acabando por se envolverem de uma forma tórrida, deixando atrás deles um rasto de infâmia e humilhação.

Anos depois estala a Grande Guerra (1914-1918) e é precisamente a guerra a principal intérprete do livro.

Stephen é incorporado no Exército Expedicionário britânico e enviado para França conjuntamente com milhares de compatriotas imbuidos por um sentido altruista que visava a paz no mundo e a elevação do império britânico a maior portência mundial.

Que utopia!

Sobrevivendo nas toscas e nauseabundas trincheiras, Stephen irá acreditar na existência física do inferno, observando uma guerra insana, completamente ausente de lógica e capacidade em retirar todos e quaisquer sentimentos aos seres humanos.

É impressionante o relato dos movimentos dos batalhões. Pungente a pequenez e a indeferença que a vida humana tomou. A forma como é descrito os combates, os assaltos onde milhares de homens morrem, alguns deles simplesmente pulverizados sem o corpo para enterrar. Corpos abandonados no campo de batalha (terra de ninguém), decompostos a céu aberto, servindo de alimento aos incontáveis ratos e corvos.

Há descrições horríveis, como por exemplo um assalto a uma trincheira alemã onde na confusão do assalto, os homens dão-se conta de estar a pisar lama e restos de carne em decomposição...

Obviamente que como pano de fundo há a tal história de Stephen e Isabelle. Porém vai mais longe, o livro abrange três gerações apanhando, já em 1978, Elizabeth, neta de Stephen que se interessa pela história do avô, sobretudo porque se dá conta de ele ter estado numa guerra tão distante do tempo e cuja História é algo aparentemente escondida, como se esta guerra fosse para esquecer.

Mais do que a história de Stephen, Isabelle ou Elizabeth, este livro é uma descrição pura e dura da desumanidade desse conflito e do quanto infuenciou negativamente toda uma geração de homens que, ao sobreviveram áquela guerra e às recordações daí resultantes, desejaram terem ficado sepultados juntos dos seus camaradas, os únicos que os compreendiriam.

Um excelente documento sobre a I Grande Guerra.

domingo, 15 de julho de 2007

Guerra e Paz - Leon Tolstói

“Guerra e Paz” é o livro da minha vida!

Mais do que um romance, esta obra é um tributo, uma dádiva à humanidade.

Tolstoi efectua uma profunda e vasta análise à sociedade russa, assim como e apoiado em profundos conhecimentos da época em questão, ele realiza também profundas análises e reflexões às medidas e estratégias militares, tanto da parte dos russos como da parte dos franceses, comandados por essa figura mítica que foi Napeolão Bonaparte. Partindo assim dos seus próprios estudos e conhecimentos, Tolstoi formaliza conceitos e teorias sobre os porquês das guerras que opôs os exércitos russo e francês (campanhas de 1807 e 1812) assim como avança com apreciações sobre a invasão francesa e a posterior fuga desorganizada de Napoleão. E Tolstoi assente em teorias e factos palpáveis e credíveis, não se inibe em desmascarar ou desmentir os historiadores da época, chegando a conclusões divergentes e polémicas, pois ele põe em causa heróis a quem chama de falsos heróis e clama por outros personagens que tiveram mais importância e influência no desenrolar da guerra, mas que foram injustamente esquecidos. Faço ideia da celeuma que provocou com estas opiniões.

E ele não abranda.

Começa por enaltecer Napoleão para depois e mais à frente, não tem pejo em chamar-lhe fraco, arrogante e cobarde, justificando-o pela capacidade que mostrou em esmagar qualquer oposição, não tendo contudo engenho de decidir e organizar, vendo-se então obrigado a fugir de Moscovo, deixando atrás de si milhares de soldados entregues a eles próprios e às circunstâncias que levou a grande maioria a encontrar a morte.

Esta é uma obra que deve e merece ser analisada ao pormenor. Uma obra que me levou cerca de três meses de apurada leitura, pois via-me "obrigado"a fazer pausas, às vezes por dias, para conseguir analisar e meditar no que havia lido. São muitas páginas de intensa informação histórica e social. Nas várias opiniões que li antes de avançar para a leitura do livro, alguém afirmava que "este é um livro que só deve ser lido por quem tenha hábitos de leitura". Concordo e digo mais: "e para quem consiga e goste de efectuar análises, pois esta obra ensina-nos muito!".

A profundidade histórica da época, a profundidade psicológica e social dos personagens é tão vasta que se torna difícil conseguir-mos assimilar tudo. Uma obra que é um manancial farto e vasto para uma tese de doutoramento ou mesmo um ensaio (se calhar existe, mas não conheço), pois esta é, sem qualquer sombra de dúvida, uma das melhoras OBRAS DE ARTE da humanidade.

Honestamente tenho dificuldades em exprimir todo o meu fascínio pela obra e conseguir oferecer-vos um pouco desse encantamento, no entanto e não querendo entrar em muitos detalhes do enredo, direi o seguinte:

Três famílias da alta sociedade russa são o suporte do livro: Bezukov; Bolkonski e Rostov. Dessas famílias sobressaem 3, 4 personagens que, na minha opinião, são as traves mestras da obra, são eles que incorporam toda uma sociedade que Tolstoi descreve: Pedro Bezukov (o meu favorito); André Bolkonski (partiu-se me o coração da forma como acabou...); Maria Bolkonski e Nicolau Rostov e, talvez, Natasha Rostov.

Vamos então começando a acompanhar a vida desses personagens e de muitos outros (é fácil começarmos a confundi-los) e é impressionante a opulência, vaidade, narcisismo e mesquinhez que grassa por toda a alta sociedade. Chega a ser irritante a forma despreocupada e vil como essa classe, por exemplo, vê a guerra. Discutem sobre assuntos fúteis e supérfluos, as festas sucedem-se e a hipocrisia é tão grande que há pessoas que têm opinião x num lado e y (totalmente oposta) noutro.

Posteriormente surge a guerra (existem dois períodos distintos de guerra com os franceses) e aí Tolstoi aprofunda as suas análises e críticas. É também notório que ele não era um grande simpatizante dos militares, pois veja-se o que ele, no início de um capítulo, escreve: "A tradição bíblica ensina-nos que a felicidade do primeiro homem antes da queda consistia na ausência de trabalho, isto é, na ociosidade. O gosto da ociosidade manteve-se no homem réprobo, mas a maldição divina continua a pesar sobre ele, não só por ser obrigado a ganhar o pão de cada dia com o suor do seu rosto, mas também porque a sua natureza moral o impede de encontrar satisfação na inactividade. Uma voz secreta diz ao homem que ele é culpado de se abandonar à preguiça. E, no entanto, se o homem pudesse achar um estado em que cumpria um dever, embora inactivo, esse estado viria a encontrar uma das condições da sua felicidade primitiva. Esta condição de ociosidade imposta e não censurável é aquela em que vive toda uma classe social, a dos militares. Em tal ociosidade está e estará o principal atractivo do serviço militar". Os militares que me perdoem, mas é simplesmente delicioso!

Após a famosa batalha de Borodino, onde Tolstoi faz uma descrição terrível da batalha, tudo se desenrola de uma forma vertiginosa. Napoleão ocupa uma Moscovo deserta, algo que ele não esperava e em vez de se decidir, resolve esperar. Isso é-lhe fatal...!

Quase a findar, Tolstoi faz uma leve dissertação sobre Napoleão. Considera-o um homem sem convicções, sem passado, sem tradições, sem nome e que nem sequer é francês. Sobe ao poder por uma série de felizes circunstâncias e são essas circunstâncias felizes que o acompanham para todo o lado. Um homem medroso e que se "mete em trabalhos" que não fazem sentido, como é o caso da expedição ao Egipto. Dessas conquistas sobressaem os ideais de glória e grandeza que consistem em praticar todo o tipo de crimes e chacinas que nunca lhe são imputados. Um homem fabricado que quando não fez falta, foi deportado para a ilha de Elba para aí viver rica e despreocupadamente, embora saibamos que ele não acabou por aí..

Obviamente Napoleão foi mais do que Tolstoi afirma. A partir de certa altura, Napoleão torna-se quase uma obsessão para Tolstoi, ele nunca perde uma oportunidade de mostrar o seu desprezo, o seu asco por uma figura que ele acha que ocupa injustamente um lugar de relevo na história europeia, inclusivamente perto do fim da obra. No entanto, também não se inibe em criticar o exército russo, os generais, o povo e o próprio imperador.

Por último, Tolstoi faz uma longa prelecção filosófica sobre o "Que é o poder" e "Qual a força que move os povos", assim como o papel da História e dos historiadores. Embora chegue a conclusões curiosas e interessantes, o certo é que se torna algo cansativo e repetitivo, pois ele alonga-se durante cerca de 40 páginas. No entanto, nada disto invalida a portentosa Qualidade do livro.

Esta opinião embora longa, não demonstra o quanto o livro tem por analisar, porém é algo que deixo à consideração de cada um.

Ano da Morte de Ricardo Reis (O) - José Saramago

Este é, para muitos, o melhor romance de José Saramago. O próprio Saramago admite que tem um carinho muito especial por ele e é um dos que mais trabalho lhe deu a nível da pesquisa histórica.
Para mim e embora seja um romance excepcional, não está ao nível do "Memorial do Convento", do "Evangelho Segundo Jesus Cristo" ou do "Ensaio sobre a Cegueira" e simplesmente porque em "O Ano da Morte de Ricardo Reis", Saramago não atinge o brilhantismo da ironia ou da hilaridade que atingiu em o "Evangelho", não atinge a genialidade do épico "Memorial" e também não atinge a corrosiva crítica social que consegue em "O Ensaio sobre a Cegueira".
Porém e sendo ou podendo ser considerado um romance histórico, Saramago conta-nos uma estória passada em Lisboa no ano de 1936 e em que o principal personagem é Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernado Pessoa.
Regressado do Brasil onde se havia refugiado por motivos políticos, Ricardo Reis desembarca em Lisboa em Dezembro de 1935. Instala-se então no famoso Hotel Bragança, alugando posteriormente um apartamento. Penso que ainda seja no Hotel (já li o livro à uns 3 anos) que e numa noite fria e chuvosa, dá de caras com o fantasma de Fernando Pessoa, fantasma que lhe irá fazer visitas regulares até à sua derradeira hora de vida.
Em "O Ano da Morte de Ricardo Reis", Saramago utiliza vários elementos da atmosfera do "Livro do Desassossego", misturando-os com informações concretas e reais: As ruas, os restaurantes ou as casas de pasto, o café Royal que ficava ao pé do Hotel Bragança e que hoje, salvo erro, é um Banco.
No entanto e embora acompanhemos todo o percurso de Ricardo Reis, o verdadeiro protagonista da estória é o próprio ano de 1936. Um ano onde ocorrem importantes acontecimentos: A guerra civil espanhola, a ascensão do nazismo, a consolidação do fascismo em Portugal, a vitória da Frente Popular em França, o desenlace da guerra na Etiópia. Todos esses acontecimentos dividem Ricardo Reis e até aí Saramago mostra-se atento, pois sabe-se que Fernando Pessoa era anticomunista e percebe-se que Ricardo Reis também o é.
Em suma: através de uma já conhecida capacidade de efabulação, Saramago transporta-nos a uma Lisboa sombria, prendendo-nos à personagem e levando-nos a assistir a espantosas e curiosas conversas entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis ou, se quiserem, entre Fernando Pessoa e ele próprio.
Um livro onde se nota, uma vez mais, uma clara intenção de Saramago em, através de metáforas, falar da nossa sociedade e dos problemas a ela inerentes.