quarta-feira, 25 de julho de 2018

Homem Domesticado (O) – Nuno Gomes Garcia


Publicado em 2017, o autor/historiador/arqueólogo Nuno Gomes Garcia, neste seu terceiro romance constrói uma narrativa distópica surpreendente, pese embora deixe no ar uma nuance de desconfiança de se ter inspirado no célebre romance de Margaret Atwood, “Diário de uma Serva”, pois as semelhanças são algumas mas, neste caso, inversamente.

Num futuro próximo, cidade de Paris, sabemos logo de início que os homens são propriedade das mulheres e que vivem sob o domínio delas, numa espécie de escravatura light, ou seja, são tratados como empregados, os castigos físicos são permitidos desde que exista má conduta e, mais importante, o homem viu-se renegado a uma situação subserviente tal, que as relações sexuais são proibidas e os casamentos são permitidos apenas para que a mulher possa gerar filhos, em laboratório, desse homem, e para que os homens façam o trabalho doméstico, sendo que é a mulher o sustento da casa.

Logo é ai, o autor inverte completamente a sociedade, criando um cenário curioso, até porque ele posteriormente, e penso que seria uma das suas principais intenções, demonstra o quanto inverosímil possa ser esse cenário, quando faz surgir na história um homem “diferente” e que vai virar todos esses conceitos estabelecidos.

A ajudar a essa subserviência do homem, outro dado curioso que o autor vai buscar aos países muçulmanos, neste caso algo que torna a mulher escrava, que é o uso do Hijab ou Niqab, aquele longo vestido em que só se vê os olhos, mas e no livro é o contrário, quem o utiliza são os homens sempre que saem à rua e só o despem quando estão em casa.

Parece-me que aí o autor quis “brincar” com isso, levando o cenário a um extremo, de forma a demonstrar que o que ele está a construir, acaba, de certa forma, por já existir em diversas sociedades (inversamente), mas brincando também com várias situações do mundo ocidental, ou seja, o que me pareceu é que o escritor quis dizer: “hoje em dia os homens são subservientes às mulheres embora pensem que não. Vamos lá construir um cenário onde isso é lei”, entendem? 

Mas a narrativa contém outros elementos que tornam esta distopia bastante atractiva e sujeita a outras interpretações. Aqui o autor expõe, para além da subserviência actual do homem pela mulher, o conhecimento (vai construindo uma espécie de Alegoria da caverna e isso é claro com a questão: “És Feliz?”), manipulação genética, o comodismo das sociedades, autoridade, ambição, ciúme e muita violência, tanto física como psicológica.

O epilogo é algo, a meu ver, desconcertante e onde o autor dá uma machadada brutal, pois deixa em aberto o enredo, ficando no ar que o que se está a passar, já se passou e que está aí diante dos nossos olhos, ele que faz uma transposição irónica para a realidade actual.

Um livro muito interessante que nos dá uma outra perspectiva, mas que tem também o condão de tocar em variadíssimos factos da nossa vida actual, criando várias analogias e metáforas sobre muitos dos factos concretos do Ser Humano e da sua capacidade autoritária.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Cebola Crua com Sal e Broa – Miguel Sousa Tavares


Miguel Sousa Tavares é alguém que não gera consensos. Há quem goste da sua postura e frontalidade e há quem não goste e refira que essa frontalidade é sim má educação. Pessoalmente estou do “lado” daqueles que gosto da sua postura algo irreverente, sem papas na língua e capaz de dizer na cara, a quem quer que seja, o que ele pensa, pois tento ser assim na minha vida e admiro aqueles que, sem querer saber do politicamente correcto, dizem o que pensam, fazendo do acto o que de mais precioso tem a liberdade.

Nascido em 1950, ele sabe bem o que é o fascismo, pois viveu-o na sua juventude e mais, é filho de duas personagens que foram conhecidos anti-fascistas, a sua mãe, a poetisa Sophia de Mello Breyner e o seu pai, Francisco Sousa Tavares, conhecido advogado que muito lutou contra o regime de Salazar.

Dessa forma, Miguel Sousa Tavares, nascido no Porto, narra neste seu livro de memórias, parte da sua vida, desde a sua infância até à fase adulta, onde, já licenciado em direito, mandou a profissão às malvas, para se dedicar a tempo inteiro ao jornalismo e, sobretudo, à escrita e pensamento, algo que, admite, o realiza e que ainda por cima lhe pagam.

E são várias as histórias que vão de 1960 a 2010, que perfilam durante quase 400 páginas.
Desde a sua estadia, que muito influenciou a sua vida e que vem dar origem ao título desta obra, numa quinta do Marão, onde passou alguns anos da sua infância. Ele, sem qualquer pejo, refere que os pais tinham imensas dificuldades económicas e que, por causa disso, tiveram de colocar alguns dos filhos a morar com amigos. Foi o caso dele.

O seu regresso a Lisboa (nasceu no Porto mas veio para Lisboa com 1 ano de idade, salvo erro), onde, no “meu” bairro da Graça, passou ali a sua infância e juventude. A estadia numa escola religiosa que ele odiou e que critica sem pudor, contando o que ali se passava. A Lisboa, desaparecida, dos anos sessenta, uma Lisboa que ele descreve como lúgubre, suja, mal iluminada, mesquinha, medrosa, fechada para o mundo, bafienta. A Faculdade de Direito, o jovem Marcelo Rebelo de Sousa, a madrugada do 25 de Abril de 1974 e os anos posteriores, onde, já licenciado, se deparou com ficheiros da PIDE que muito o incomodaram, deixando antever que continua a ser um assunto não resolvido, e posteriormente a sua entrada no jornalismo e várias histórias do meio com vários políticos, sobretudo Mário Soares a quem ele chama o pai da liberdade e a quem o país deve, explicando porquê, de não termos caído numa guerra civil após o 25 de Abril.

Muitas histórias que achei deliciosas, muitas das quais me revi, pois quando ele começa a contra as histórias das suas estadias no Algarve, nas noites de pesca à lula, revi-me no que lia, pois também eu tenho memórias lindíssimas desse tipo de pesca no Algarve.

Em suma, um livro para quem quer conhecer a opinião de quem viveu momentos impares da nossa História recente e, quer se goste, quer não, um livro honesto de alguém que soube e sabe viver a vida como quer e nunca foi politicamente correcto, demonstrando, que a honestidade intelectual e moral é algo que, acima de tudo, nos traz benefícios.

“Pode um homem viver impunemente começando a sua infância numa aldeia do Marão, comendo cebola crua com sal todas as merendas? E daí saltar para o mundo cinzento e as manhãs submersas da vida salazarenta da Lisboa dos anos sessenta? Acordar na manhã luminosa do 25 de Abril e descobrir que, afinal, éramos todos antifascistas e revolucionários e, logo depois, ir ao encontro do mundo e descobrir-se a si mesmo como uma testemunha privilegiada de tempos incríveis que, não os narrando, teria sepultado para sempre na cinza dos dias inúteis? Declaro que vi. E, por isso, conto. Antes que a água tudo lave e tudo apague”.


domingo, 15 de julho de 2018

Uma Longa Caminhada: Memórias de um menino soldado - Ishmael Beah


Em 1991 estala a guerra civil na Serra Leoa que só terminaria em 2002.

De uma forma muito geral, a guerra civil inicia-se por um grupo extremista denominado RUF (Frente Revolucionária Unida), também conhecida por rebeldes. Obviamente que por detrás dessa guerra, existia vários interesse de cariz económico, pois se a Serra Leoa fosse um país de fracos recursos, de certeza que não iria aparecer alguém contra o poder estabelecido e disponível para encetar uma terrível guerra que iria causar a morte a milhares de pessoas.

Independentemente das razões desse conflito, que qualquer pessoa pode pesquisar na internet, este livro aborda algo que sempre foi e sempre será muito usual, que é a utilização de crianças como soldados e a forma como se tornam inumanas à medida que o sofrimento e a sensação de perda invade as suas vidas.
Ishmael Beah foi assim uma dessas crianças que viu a sua infância perdida em prol de uma guerra que não entendia.

Obrigado a fugir da sua aldeia, Ishmael perde toda a família, assassinada pelos rebeldes, e, mais tarde, vê-se incorporado no exército nacional em que a sua missão seria combater e matar rebeldes.

De uma forma gradual, vamos assistindo a transformação de Ishmael de criança para um terrível assassino que mata sem piedade, drogando-se diariamente e fazendo dessa vida um vício, pois, mais tarde quando é salvo daquele inferno pela UNICEF, ele tem imensa dificuldade para reaprender a viver como um Ser Humano.

Este é pois um relato pungente do percurso de Ishmael e a forma como ele foi recrutado e como se transformou numa máquina de guerra com apenas 15 anos. Relatos atrozes do que ele fez, como matou e viu morrer, relatos dignos de qualquer filme de terror e que é difícil imaginarmos, pois são factos que vamos lendo por aí mas que julgamos sempre não suceder.

Mais impressionante é perceber que Ishmael foi apenas mais um. Não daquele conflito, mas de inúmeros. Hoje em dia, nos vários conflitos que existem no planeta, sabemos que existem crianças soldados e é impressionante perceber o que elas são obrigadas a fazer e a assistir e ficamos com a ideia que é completamente impossível voltarem a ser “normais”, pois depois de terem assistido e cometido tantas atrocidades, é impossível um Ser Humano ficar normal.

“A matança tinha se tornado uma atividade diária. Eu não tinha pena de ninguém. Minha infância tinha passado sem que eu soubesse e parecia que meu coração havia congelado.”

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Malta das Trincheiras (A) : migalhas da grande guerra: 1917-1918 – André Brun


100 anos volvidos depois da participação portuguesa na Primeira Grande Guerra, centenário que poucos referiram mas que teve ocasião em Abril passado (2018), a Sociedade Portuguesa de Autores com a parceria da editora Guerra e Paz, teve a hombridade de reeditar um dos principais testemunhos desse conflito e, talvez, o testemunho mais conhecido e mais estudado a nível nacional: A Malta das Trincheiras do Capitão André Brun, ele próprio dramaturgo, cronista e argumentista de filmes, bem como um dos fundadores, em 1925, daquela que é hoje a Sociedade Portuguesa de Autores.


André Francisco Brun nasceu em Lisboa em Maio de 1881, vindo a falecer na mesma cidade em Dezembro de 1926 aos 45 anos.


Conhecido dramaturgo, autor de obras, à altura bem conhecidas, como a “Maluquinha de Arroios” ou o filme “A Vizinha do Lado”, André Brun, para além da sua actividade de escritor/cronista, seguiu a vida militar, alcançando a patente de major por distinção dos seus serviços na Primeira Grande Guerra onde comandou o batalhão de Infantaria 23 do C.E.P., e é precisamente a narração do que ele foi assistindo na Primeira Grande Guerra que nasce “A Malta das Trincheiras”.


Num tom muito divertido, mas simultaneamente sério e pungente, traça um retrato do quotidiano dos soldados portugueses nas trincheiras em La Lys durante a Primeira Grande Guerra. 


Crónica de humor, mas também carregada de sentimentalismo e humanismo, André Brun, deixando sempre no ar a tragédia humana que é a guerra (e esta especialmente), vai narrando episódios que têm o espaço temporal de pouco mais de um ano, centrando-se o seu início em Fevereiro de 1917 a Agosto de 1918, altura em que chega a Portugal e deixa para trás uma guerra que o marcou física e espiritualmente para sempre assim como todos aqueles que lá andaram e sobretudo andaram nas trincheiras.


Ou seja, André Brun estava presente quando se deu a grande ofensiva alemã no dia 09 de Abril de 1918 e que dizimou parte do exército português. A sorte dele e do seu batalhão é que nesse dia tinham sido rendidos e estavam já a alguns quilómetros da frente, mesmo assim ele descreve os acontecimentos com uma frieza notável ao mesmo tempo que deixa bem claro da enorme valentia de todos aqueles que, apanhados desprevenidos, combateram os boches e, em clara inferioridade numérica e psicológica, aguentaram o que puderam.


A ofensiva de 09 de Abril está bem documentada, mas o que vai sobressaindo deste livro é o dia-a-dia das tropas portuguesas e de como os soldados portugueses viam o conflito e se comportavam e, a leitura atenta que efectuei é claro que esta obra tem servido de influência e tem sido um manancial de informações para alguns que têm produzido obras da Primeira Grande Guerra.


E André Brun deixa também claro outros factos. Ele não relata apenas episódios dos soldados portugueses, ele traça também vários comentários das tropas inglesas e, sobretudo, da excelente opinião que os ingleses tinham dos soldados portugueses, pois várias vezes ele refere que oficial X ou Y lhe referiram da boa têmpera e fibra do soldado português, traçando também algumas criticas ao governo e ao alto comando português, pois várias vezes ele refere que houve muitos soldados portugueses que foram condecorados com cruzes de guerra britânicas e que, embora ele as tenha pedido insistentemente, o governo português nunca sequer enviou medalha alguma.


Por outro lado a critica aos Cachapins e Palmípedes é feroz e explica porquê, bem como deixa claro algo que hoje em dia é bem conhecido, a maioria dos oficiais vinha a Portugal em gozo de licença e, cunha aqui, cunha ali, nunca mais voltava a era a arraia-miúda que por lá combatia e defendia a nação.


No fim, para além da marcha da sua Infantaria 23, ele descreve o momento de partida para Lisboa depois de 16 meses nas trincheiras: “Subi para o carro que havia de levar-me à estação. Os meus melhores amigos abraçaram-me na estrada; e quando o cocheiro fustigou as alimárias, quando a largo trote das muares passei junto da minha sentinela que se perfilava, pus-me de pé para retribuir a continência e duas lágrimas me caíram pela cara abaixo”.