Miguel
Sousa Tavares é alguém que não gera consensos. Há quem goste da sua postura e
frontalidade e há quem não goste e refira que essa frontalidade é sim má
educação. Pessoalmente estou do “lado” daqueles que gosto da sua postura algo
irreverente, sem papas na língua e capaz de dizer na cara, a quem quer que
seja, o que ele pensa, pois tento ser assim na minha vida e admiro aqueles que,
sem querer saber do politicamente correcto, dizem o que pensam, fazendo do acto
o que de mais precioso tem a liberdade.
Nascido
em 1950, ele sabe bem o que é o fascismo, pois viveu-o na sua juventude e mais,
é filho de duas personagens que foram conhecidos anti-fascistas, a sua mãe, a
poetisa Sophia de Mello Breyner e o seu pai, Francisco Sousa Tavares, conhecido
advogado que muito lutou contra o regime de Salazar.
Dessa
forma, Miguel Sousa Tavares, nascido no Porto, narra neste seu livro de
memórias, parte da sua vida, desde a sua infância até à fase adulta, onde, já
licenciado em direito, mandou a profissão às malvas, para se dedicar a tempo
inteiro ao jornalismo e, sobretudo, à escrita e pensamento, algo que, admite, o
realiza e que ainda por cima lhe pagam.
E
são várias as histórias que vão de 1960 a 2010, que perfilam durante quase 400
páginas.
Desde
a sua estadia, que muito influenciou a sua vida e que vem dar origem ao título
desta obra, numa quinta do Marão, onde passou alguns anos da sua infância. Ele,
sem qualquer pejo, refere que os pais tinham imensas dificuldades económicas e
que, por causa disso, tiveram de colocar alguns dos filhos a morar com amigos. Foi
o caso dele.
O seu
regresso a Lisboa (nasceu no Porto mas veio para Lisboa com 1 ano de idade,
salvo erro), onde, no “meu” bairro da Graça, passou ali a sua infância e
juventude. A estadia numa escola religiosa que ele odiou e que critica sem pudor,
contando o que ali se passava. A Lisboa, desaparecida, dos anos sessenta, uma
Lisboa que ele descreve como lúgubre, suja, mal iluminada, mesquinha, medrosa,
fechada para o mundo, bafienta. A Faculdade de Direito, o jovem Marcelo Rebelo
de Sousa, a madrugada do 25 de Abril de 1974 e os anos posteriores, onde, já
licenciado, se deparou com ficheiros da PIDE que muito o incomodaram, deixando
antever que continua a ser um assunto não resolvido, e posteriormente a sua
entrada no jornalismo e várias histórias do meio com vários políticos,
sobretudo Mário Soares a quem ele chama o pai da liberdade e a quem o país
deve, explicando porquê, de não termos caído numa guerra civil após o 25 de
Abril.
Muitas
histórias que achei deliciosas, muitas das quais me revi, pois quando ele
começa a contra as histórias das suas estadias no Algarve, nas noites de pesca
à lula, revi-me no que lia, pois também eu tenho memórias lindíssimas desse
tipo de pesca no Algarve.
Em
suma, um livro para quem quer conhecer a opinião de quem viveu momentos impares
da nossa História recente e, quer se goste, quer não, um livro honesto de
alguém que soube e sabe viver a vida como quer e nunca foi politicamente
correcto, demonstrando, que a honestidade intelectual e moral é algo que, acima
de tudo, nos traz benefícios.
“Pode um homem viver impunemente começando a
sua infância numa aldeia do Marão, comendo cebola crua com sal todas as
merendas? E daí saltar para o mundo cinzento e as manhãs submersas da vida
salazarenta da Lisboa dos anos sessenta? Acordar na manhã luminosa do 25 de
Abril e descobrir que, afinal, éramos todos antifascistas e revolucionários e,
logo depois, ir ao encontro do mundo e descobrir-se a si mesmo como uma
testemunha privilegiada de tempos incríveis que, não os narrando, teria
sepultado para sempre na cinza dos dias inúteis? Declaro que vi. E, por isso,
conto. Antes que a água tudo lave e tudo apague”.
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