quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Altas Montanhas de Portugal (As) – Yann Martel


Dividido em três histórias que decorrem ao longo do século XX, histórias essas com alguns pontos em comum que se vão interlaçando, este é um romance estranho que classificaria como surrealismo fantástico mas que tem como âncora a dor da perda e é esse facto que está subjacente às três histórias e que marcam, indubitavelmente, os personagens.

Na primeira história, surge-nos Tomás que em 1904, depois de um profundo desgosto, sai de Lisboa com destino às Altas Montanhas de Portugal em busca de uma relíquia que ele acaba por descobrir a sua existência através de um diário do séc. XVII do Padre Ulisses que aborda o tráfico de escravos feito pelos portugueses, dando-nos também a imagem do seu progressivo deslumbramento religioso e que vai ficar bem expresso na tal relíquia. O seu transporte é um automóvel, dos primeiros a aparecer em Portugal, e a sua viagem vai desbravando um Portugal rural, desaparecido e estranho, viagem essa cheia de peripécias e de factos que irão ser interligados com as outras duas histórias.

A segunda história, trinta e cinco anos depois, e a história que eu mais gostei, dá-nos a imagem de uma noite do patologista, Dr. Eusébio que, no seu gabinete do Instituto de Medicina Legal em Bragança, se prepara para efectua uma autopsia. Nisso, recebe, em primeiro lugar, a visita da sua esposa e é deslumbrante a abordagem alegórica entre os dogmas do cristianismo e os romances de Agatha Christie, autora que o casal muito aprecia e que de facto conseguem colar as suas teorias. Posteriormente surge uma velha senhora que lhe pede para autopsiar o seu marido, desenrolando-se então alguns factos extremamente esquisitos mas que irão ter interligação com a primeira e a terceira história.

Finalmente, na terceira história, décadas depois da história do dr. Eusébio, um senador canadiano, descendente de portugueses, resolve abandonar a sua vida depois da morte da esposa e, na companhia de um chimpanzé, assentar arraiais no norte de Portugal. Das três histórias, foi a que menos gostei e aquela que mais estranha achei. É óbvio que a saudade, solidão e a dor se fazem sentir de forma incisiva, mas achei a história e o desenrolar dos acontecimentos demasiado fantasiosos e não gostei do fim, pese embora tivesse percebido a interligação com as outras duas histórias, mas não me conseguiu surpreender da forma como eu estava à espera que sucedesse.

Depois do sensacional “A Vida de Pi”, fico sempre à espera de um qualquer volte-face nos seus romances, uma espécie de toque de midas que nos deixa completamente estarrecidos diante da enorme alegoria com que nos presenteia.

Na minha óptica, não é o caso. 

As duas primeiras histórias levam-nos a crer que a metáfora e a alegoria andam de mãos dadas e que no fim tudo nos vai ser exposto, em parte até é verdade, mas o final é algo sensaborão e está a anos luz de surpreender, ficando com a sensação de “só isto?”, ou “acaba assim?”. 

Não diria que é um final banal, mas penso que o escritor nos guia por determinados caminhos para no fim terminar num enorme precipício. Entendi que o autor pretendeu remeter-nos de volta ao início para tudo se iniciar de novo, mas, pessoalmente, esperava outro desfecho.
  
Por fim e embora tenha efectivamente gostado do livro, quero realçar vários erros factuais que encontrei no livro. O principal e o que mais me ressaltou á vista foi o de Yann Martel descrever um Portugal rural, muito atrasado, o que até é verdade pela época em si, mas e sobretudo na primeira história, o itinerário que vai traçando é muito irreal, pois demora dias para viajar “meia dúzia” de quilómetros e, de repente, já se encontra em trás-os-montes. Ou seja, para quem não conhece Portugal, ficará com a ideia da imensa pequenez do país. Se calhar até é uma alegoria que ele quis criar, não sei, tudo se espera de Yann Martel, mas achei, vá lá, estranho, mas ao fim e ao cabo trata-se de um romance onde o surrealismo fantástico está bem vincado.


terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

BlacKkKlansman: O Infiltrado (2018)


Tendo sido nomeado para algumas categorias dos Óscares 2019 (ganhou o Óscar de Melhor Argumento Adaptado), este filme, realizado por Spike Lee foi o filme que mais me surpreendeu pela positiva dos últimos tempos, não apenas porque é um filme politicamente incorrecto e incómodo, como também porque coloca o dedo na ferida, ou seja, consegue ir ao âmago de Ser do norte-americano, dando-nos a perspetiva racial de ambos os lados.

Mais curioso é saber que a história que está na génese do filme é real.

Ron Stallworth, um detective negro, caso raro nos anos 70, consegue infiltrar-se no Ku Klux Klan (KKK) simultaneamente que se consegue infiltrar e insinuar em reuniões dos panteras Negras. Ou seja, logo desde início temos perspetivas antagónicas de um dos maiores flagelos da Humanidade: O Racismo e xenofobia, sobretudo nos Estados Unidos, um país com uma enorme tradição secular racista (basta ver o que esteve por detrás da guerra civil 1861-1865), sendo que ainda hoje o Sul dos Estados Unidos são altamente racistas e é fácil perceber isso sobretudo em pequenas cidades do interior onde a bandeira da confederação surge em muitos quintais orgulhosamente hasteada.

Não vou abordar como Ron Stallworth se consegue infiltrar na KKK, para isso convido a ver o filme que valerá bem a pena, mas o que sobressai no filme e, penso que foi a intenção de Spike Lee, é demonstrar e sobretudo alertar, para o facto de os Estados Unidos estarem a regressar a esse passado com o governo de Donald Trump. Não é por acaso que o principal lema do KKK é: America First!

Mas para dar um toque do quanto absurdo isto tudo é, Spike Lee dá-lhe um toque mesmo paradoxal na forma como explora a violência verbal, o ódio nas expressões e no próprio desenrolar do filme, escarnecendo com a situação e com os cargos políticos.




Obviamente que o realizador destaca mais a comunidade negra, tornando-a mais dócil, dando até uma imagem que ser negro é “um modo de vida”, não sei se me faço entender, mas consegue evitar diabolizar e ridicularizar os brancos, dando até uma imagem algo cómica do KKK que, às tantas, começa a parecer uma daquelas organizações cheias de intenções ilusórias dirigidas por alucinados que não fazem mal a ninguém, mas que, de repente e levados por um ódio insano que nem eles conseguem explicar, explodem com algo causando várias vitimas.

Ou seja, o filme vai alterando entre um Drama e uma comédia, sempre colocando o dedo na ferida na complexa teia em que tudo se vai formando.

Dos protagonistas, pese embora o papel central esteja em John David Washington e Adam Driver, que efectivamente estão muito bem, eu confesso que gostei muito da representação de Jasper Pääkkönen no papel de ultra fascista membro dos KKK, Félix, sinceramente, achei a sua interpretação brilhante, chegando ao ponto de ser hilariante a forma como ele pensa e vê a organização.

Classificação: 4 Estrelas em 5


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Festa do Chibo (A) – Mário Vargas Llosa


Excelente livro de um grande escritor.

Prémio Nobel em 2010, Mário vargas Llosa sabe aliar uma escrita poética, bastante acessível e sem grandes floreados e descrições, ao acto de contador de histórias, tecendo narrativas enleantes que rapidamente nos agarram, não apenas pelo enredo em si como também pelo interesse que o assunto nos desperta.

Este “A festa do Chibo”, publicado em 2000, retrata o período final da ditadura de Rafael Trujillo, assassinado em Maio de 1961, antes, durante e depois desse assassinato, efectuando igualmente uma profunda reflexão sobre a(s) ditadura(s), centrando-se nos aspectos negros do regime.

O romance segue três linhas narrativas que se vão interligando. Enquanto que a primeira narrativa aborda o regresso de Urania Cabral, depois de trinta e cinco anos fora da Rep. Dominicana, a segunda narrativa centra-se sobretudo nos últimos dias de Trujillo, mostrando-nos os bastidores do seu aterrador regime  ao qual o pai de Urania pertenceu de forma intima e que esta no cerne da fuga de Urania trinta e cinco anos antes.

A terceira narrativa segue o percurso dos assassinos de Trujillo e o seu assassinato, mostrando o que os moveu e como foi efectuado o crime.

Cada aspecto do romance é como uma peça que vai compondo o puzzle final, mostrando-nos a verdadeira faceta de trinta anos de ditadura, onde o medo imperava a e impunidade gerava a imagem, verdadeira, que aqueles “todos poderosos” tudo podiam sem que nada fosse feito contra.

A parte final do romance aborda o declínio do regime, os jogos políticos que advêm do fim e da importância política e social que o regime tive e tem, não apenas no país, bem como naquela zona do planeta.

Pelos olhos de Urania Cabral percepcionamos as atrocidades que eram cometidas, pois para além de ela se ter tornado numa especialista na História da Ditadura, sentiu na pele, de uma forma atroz, a garra daquele regime facínora.

Repleto de descrições violentas, “A Festa do Chibo” é um romance que vale a pena ser lido por tratar e retractar as ditaduras no seu particular sem qualquer tipo de máscaras, algo tão característico de Vargas Llosa. Por outro lado é também um grito de alerta para o que é uma ditadura, pois que ninguém se iluda, a História demonstra que as ditaduras, independentemente do grau de violência, são todas iguais e os horrores aqui descritos alertam, sobretudo as gerações novas, que uma ditadura não traz nada de bom.

Romance altamente recomendado.