Há clássicos que são tidos
como literatura juvenil mas que estão muito longe de o ser, aliás, é-me difícil
perceber quem são os iluminados que rotulam certas obras sem considerarem a
época e o contexto da sua criação.
As Viagens de Gulliver é
mais um destes casos. Considerada como literatura juvenil, é vista por muitos
leitores como literatura menor, onde alguém narra as aventuras de um
aventureiro que se vai deparando com mundos fantásticos e cheios de impossíveis
num século muito longínquo.
Muito longe da verdade está
quem assim julga, pois estamos perante uma narrativa que analisa a sociedade
inglesa do séc. XVII, sobretudo a vida social e política, de uma forma mordaz e
altamente critica.
Publicado em 1726, o livro
descreve as supostas verdadeiras e fantásticas viagens de Lemwel Gulliver, o
narrador-protagonista, a várias ilhas que o ser humano desconhecia e que tem em
Gulliver o seu primeiro visitante. Após um naufrágio tão comum na época, Gulliver
alcança uma praia desconhecida. Quando acorda deparara-se com dezenas de
criaturas minúsculas. Acaba de chegar a Lilliput onde conhece uma sociedade
composta por pessoas que não ultrapassam os 15 cm, em constante conflito por
futilidades, nessa ilha ele é um gigante. Depois, aporta em Brobdingnag, onde
sucede precisamente o contrário. Ali o povo é composto por gigantes, sendo
Gulliver um ser minúsculo. Posteriormente o terceiro cenário torna-se a Ilha flutuante
de Laputa onde se depara com habitantes que se entretêm com conspirações
enquanto a sua sociedade se dirige alegremente para o abismo e, no último
cenário, ele conhece os Houyhnhnms, cavalos falantes que dirigem o seu país,
enquanto, no lado oposto há os Yahoos, seres semelhantes aos humanos mas com
inteligência de animais… irracionais.
Por aqui se pode ver que é estúpido
considerar esta obra como literatura juvenil, pois basta atentar à actividade
profissional de Swift (secretário de relações públicas), e à natureza do
próprio autor (sabe-se que ele odiava crianças e considerava a estupidez humana
como o causador de todos os males sociais),para rapidamente compreendemos que
havia mais substância e intenção do que aquela que é tida, pois vejamos:
Nesta obra o protagonista
visita quatro sociedades completamente distintas. Nelas, é possível perceber analogias
comportamentais dos seres humanos. A sociedade corrupta, fútil, cheia de vícios
e más atitudes, é aqui expressa de uma forma satírica mas, diria, directa e
clara. Swift consegue criar expectativa no leitor nas viagens que vai
imaginando, critica ferozmente a estrutura social e política e os vícios, as
hipocrisias e os podres que lhe são inerentes, diria, até aos nossos dias (e no futuro também). Mas
vai mais longe, a própria religião é censurada na sua falsa virtude, assim
como, e isso é claro, ridiculiza vários personagens conhecidos na época que,
actualmente, confesso ser muito difícil identificar. Mas a análise contínua
imparável, a exploração dos mais ricos aos pobres, vivendo estes miseravelmente
enquanto os ricos se banqueteiam e ostentam sem qualquer tipo de pejo, o
abandono dos idosos, toda a irracionalidade da raça humana.
Não sendo uma obra de
leitura muito fácil, dada a análise cuidada que é necessário ser efectuada,
percebe-se que o objectivo de Swift era claramente o de criticar todas as
franjas da sociedade, os vícios da corte e do regime que permitiam tanta
desigualdade. O autor expressa o seu desânimo e decepção face à situação social
e política e também face à natureza pérfida do ser humano, e isso não passou
despercebido na altura, provocando incómodo e alguns debates em torno desta
excelente obra.