sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Deus Veio ao Afeganistão e Chorou - Siba Shakib


Já li alguns livros sobre a vida das mulheres nos países árabes fundamentalistas, sobretudo casos de mulheres ocidentais raptadas que se vêm, de um momento para o outro, sob o jugo masculino que, protegidos por um estado fanático, as torna muito vulneráveis a todo o tipo de violações e maus tratos.

Este livro, da jornalista iraniana Siba Shakib, vai mais longe, muito mais longe.

Neste relato doloroso, acompanhamos a vida de Shirin-Gol desde que nasce numa aldeia perdida nos confins do Afeganistão.

Nascida na década de 70, Shirin-Gol cresce numa pequena comunidade de agricultores e pastores. Gente pobre, muito pobre, são uma comunidade onde o papel do homem predomina e onde a mulher apenas é tida para servir e cuidar dos filhos.

Ainda criança, os russos invadem o Afeganistão e Shirin-Gol nunca mais irá ter descanso. Vendo os pais e os irmãos tornarem-se mujahidin, Shirin-Gol acaba por fugir do local onde nasceu, iniciando aí um périplo que a irá conduzir ao Paquistão, voltar ao Afeganistão, fugir para o Irão e voltar a regressar ao Afeganistão.

Em todas essas andanças, o que impressiona mais, é a total miséria a incerteza do que pode acontecer a seguir. Ou seja, aquele povo sabe que de um momento para o outro tudo pode acabar devido a uma mina, a um míssil ou a um ataque de qualquer grupo armado. E não faltam situações onde tudo é arrasado e morto. Há inclusive uma das crianças que diz: “estou farto de fugir, estou farto de ver os meus amigos serem mortos”.

Impressionante também a forma como a mulher é mal tratada. Invadidos pelos russos que combateram de todas as formas, vêm-se numa guerra fratricida entre mujahedins, onde irão lutar irmãos contra irmãos. Na memória fica uma imagem quando os russos abandonam o Afeganistão. Shirin-Gol fica feliz por pensar que a guerra ia acabar, a mãe diz-lhe: “não sabes nada da vida, agora é que a verdadeira guerra vai começar”.

No entanto o pior estava para vir. Quando os talibãs impuseram o seu regime de terror e opressão, aí é verdadeiramente terrível constatar que a invasão soviética e a guerra entre os mujahidins eram brincadeiras de criança.

Os talibans impuseram um regime islâmico fundamentalista que, logo nos primeiros meses, proibiu o cultivo e venda de ópio que servia de “sustento” para a maioria do povo. As mulheres estavam impedidas de trabalhar, de ir à escola, ir aos hospitais públicos e até de sair sozinhas. Só podiam sair acompanhadas dos homens e só se fosse mesmo imprescindível. Casos extremos de violência pública são chocantes. Punições e execuções em estádios de futebol, em plena rua, são neste livro referidos e, uma vez mais, são chocantes. Mas não se pense que esse movimento dava total liberdade aos homens. Não, os homens eram obrigados a deixar crescer a barba e a rapar o cabelo, depois, era um chorrilho de humilhações onde não podiam reagir sob pena de serem executados sem dó nem piedade.

Gostei do livro sobretudo pela mais valia informativa e por constatar esses casos de viva voz por alguém, mulher, que sofreu na pele essas privacidades, passou uma vida inteira em guerras e viu morrer irmãos, sobrinhos, pais e amigos.

Uma história pungente que incomoda, que mostra a miséria humana, o efeito de movimentos religiosos cuja vida humana nada vale. O contraste entre o nosso mundo e aquele é brutal e, como não podemos deixar de inquirir, assim como Shirin-Gol a certa altura questiona: “Onde está Deus?”, “É isto que Deus quer?”.

Um livro muito bom. Não se trata de uma pérola da literatura mas também não foi isso que a autora pretendeu escrever. É antes um pedido de ajuda para um país com tradições seculares, rico em História, que há muitos anos é despojado das suas riquezas e que tem o povo a morrer na maior miséria, privado da sua honra e dignidade.

7 comentários:

WhiteLady3 disse...

Parece ser bastante forte. Fica a curiosidade mas sinto que não consigo ler testemunhos do género. Já ver na televisão documentários e notícias de algumas atrocidades cometidas me fazem sentir-me algo indisposta, penso que um livro seria pior, por ser, pelo menos no meu caso, uma experiência mais pessoal. No entanto há que aplaudir a escrita a alertar para o que vai acontecendo, não fosse assim poderia a Humanidade ser muito pior.

NLivros disse...

Olá White!
Compreendo o que dizes, pois o livro torna esse sentimento mais intenso, pois andamos a ler, durante dias, sobre o mesmo assunto.

Paula disse...

É muito triste! E mais triste ainda é que os países onde reina a "inteligência" não façam nada contra estes crimes horrendos!
O ano passado li "Blasfémia" (cheguei a fazer uma corrente de leitura com o livro - que deve estar quase a chegar-me às mãos) e é muito triste vermos como de um momento para o outro as pessoas não têm "mão" na sua própria vida!

deixo o link da corrente de leitura http://viajarpelaleitura.blogspot.pt/2011/10/corrente-de-leitura-blasfemia-de-asia.html

NLivros disse...

Olá Paula!
Sabes, mais do que crimes, na minha opinião, o que acontece nestes países é mais do foro cultural do que outra coisa mais.
Não conhecia essa corrente de leitura e nem o livro. Vou pesquisar um pouco mais.

Paula disse...

Senti bastante este aspecto do "foro Cultural" em blasfémia. Cheguei a pensar várias vezes em como podem as pessoas continuar a viver num país que não as protege? Que não protege a sua família? Que é uma ameaça constante! É definitivamente a cultura que está tão entranhada e da qual não se conseguem libertar, nem para se salvar!

NLivros disse...

Olá Paula!
Neste presente livro, a protagonista, questiona-se várias vezes sobre do porquê de o povo ser assim tratado e dessas tradições seculares.
Faz-nos pensar, é um facto!
Agora, o que sucedia no Afeganistão e nos países com essa cultura, é também o resultado de um fanatismo religioso ou, se quisermos, correntes religiosas que têm interpretações diferentes do Corão. Se quiseres, podemos comparar ao que sucedia na Europa nos anos dourados da Inquisição, onde a mulher era vista e tratada à semelhança do que sucede nessa culturas talibãs.

Igor Boigues Pesente Gomes disse...

Olá, estou atrás deste livro há tempos, mas infelizmente não estou achando para comprar. Li a sinopse dele e é maravilhoso. Saberia onde posso encontra-lo ou se é possível encontra-lo?