Dividido em três histórias que
decorrem ao longo do século XX, histórias essas com alguns pontos em comum que
se vão interlaçando, este é um romance estranho que classificaria como surrealismo
fantástico mas que tem como âncora a dor da perda e é esse facto que está
subjacente às três histórias e que marcam, indubitavelmente, os personagens.
Na primeira história, surge-nos
Tomás que em 1904, depois de um profundo desgosto, sai de Lisboa com destino às
Altas Montanhas de Portugal em busca de uma relíquia que ele acaba por
descobrir a sua existência através de um diário do séc. XVII do Padre Ulisses
que aborda o tráfico de escravos feito pelos portugueses, dando-nos também a
imagem do seu progressivo deslumbramento religioso e que vai ficar bem expresso
na tal relíquia. O seu transporte é um automóvel, dos primeiros a aparecer em
Portugal, e a sua viagem vai desbravando um Portugal rural, desaparecido e
estranho, viagem essa cheia de peripécias e de factos que irão ser interligados
com as outras duas histórias.
A segunda história, trinta e
cinco anos depois, e a história que eu mais gostei, dá-nos a imagem de uma
noite do patologista, Dr. Eusébio que, no seu gabinete do Instituto de Medicina
Legal em Bragança, se prepara para efectua uma autopsia. Nisso, recebe, em
primeiro lugar, a visita da sua esposa e é deslumbrante a abordagem alegórica
entre os dogmas do cristianismo e os romances de Agatha Christie, autora que o
casal muito aprecia e que de facto conseguem colar as suas teorias.
Posteriormente surge uma velha senhora que lhe pede para autopsiar o seu
marido, desenrolando-se então alguns factos extremamente esquisitos mas que
irão ter interligação com a primeira e a terceira história.
Finalmente, na terceira história,
décadas depois da história do dr. Eusébio, um senador canadiano, descendente de
portugueses, resolve abandonar a sua vida depois da morte da esposa e, na
companhia de um chimpanzé, assentar arraiais no norte de Portugal. Das três
histórias, foi a que menos gostei e aquela que mais estranha achei. É óbvio que
a saudade, solidão e a dor se fazem sentir de forma incisiva, mas achei a
história e o desenrolar dos acontecimentos demasiado fantasiosos e não gostei
do fim, pese embora tivesse percebido a interligação com as outras duas
histórias, mas não me conseguiu surpreender da forma como eu estava à espera
que sucedesse.
Depois do sensacional “A Vida de
Pi”, fico sempre à espera de um qualquer volte-face
nos seus romances, uma espécie de toque de midas que nos deixa completamente estarrecidos
diante da enorme alegoria com que nos presenteia.
Na minha óptica, não é o caso.
As duas primeiras histórias
levam-nos a crer que a metáfora e a alegoria andam de mãos dadas e que no fim
tudo nos vai ser exposto, em parte até é verdade, mas o final é algo sensaborão
e está a anos luz de surpreender, ficando com a sensação de “só isto?”, ou “acaba
assim?”.
Não diria que é um final banal,
mas penso que o escritor nos guia por determinados caminhos para no fim
terminar num enorme precipício. Entendi que o autor pretendeu remeter-nos de
volta ao início para tudo se iniciar de novo, mas, pessoalmente, esperava outro
desfecho.
Por fim e embora tenha
efectivamente gostado do livro, quero realçar vários erros factuais que
encontrei no livro. O principal e o que mais me ressaltou á vista foi o de Yann
Martel descrever um Portugal rural, muito atrasado, o que até é verdade pela
época em si, mas e sobretudo na primeira história, o itinerário que vai
traçando é muito irreal, pois demora dias para viajar “meia dúzia” de
quilómetros e, de repente, já se encontra em trás-os-montes. Ou seja, para quem
não conhece Portugal, ficará com a ideia da imensa pequenez do país. Se calhar
até é uma alegoria que ele quis criar, não sei, tudo se espera de Yann Martel,
mas achei, vá lá, estranho, mas ao fim e ao cabo trata-se de um romance onde o surrealismo
fantástico está bem vincado.