Gabriel Garcia Marquez é para mim um escritor esquisito, não só ao nível da composição dos seus textos, como sobretudo devido à estranheza das suas histórias.
Prémio Nobel em 1982, Garcia Marquez assentou toda a sua carreira, enquanto escritor, num género que podemos classificar, ou pelo menos eu classifico-o, do realismo-fantástico, género esse povoado de fantasmas, demónios e situações surrealistas que vão sendo misturadas com o mundo real, dando então origem a um universo onírico, algo confuso, que deve ser lido, pensado e analisado com muito cuidado.
Pessoalmente não sou apreciador desse estilo, nem do simples e puro género do fantástico. Amante do Histórico e do realismo puro (Eça de Queirós, Maugham, Dostoiévski, Tolstoi, Vítor Hugo, Zola, Dickens, Jorge Amado e tantos outros), gosto essencialmente de ler sobre temas sociais e humanos e, após a leitura ou durante a mesma, efectuar vastas análises ao que leio e enquadrar aquela realidade na nossa actual sociedade.
No entanto e em relação a Marquez, algo me incomoda. Incomoda-me não entender a sua escrita e incomoda-me haver toda uma legião de fãs em todo o mundo que fazem dele o escritor mais consagrado do nosso tempo, sem que eu entenda esse sucesso. E vai daí, há algum tempo propus-me a entender a sua obra e o contexto da suas histórias.
Lendo por duas (2) vezes “Cem anos de solidão”, lendo também “Relato de um náufrago” e tentando ler o “Outono do Patriarca”, em todas estas situações fiquei sempre desiludido e como uma clara sensação de tempo perdido.
Até que, numa ida à biblioteca, me deparo com este “Viver para contá-la” livro que, alegadamente e segundo o que já havia lido, tratar-se-ia de uma autobiografia. Nada melhor então para ficar a conhecer em definitivo a s suas raízes, filosofias, paixões, gostos e inspirações que lhe moldaram o carácter e directamente o seu estilo de escrita.
”Viver para contá-la” trata-se então de uma autobiografia de Marquez que, sem preconceitos e tabús, narra de uma forma quente, apaixonada e ao mesmo tempo crua, toda a sua vida.
Antes de aprofundar a análise ao livro, há que referir que este trata-se do primeiro volume da sua biografia.
O livro inicia-se já enquanto Marquez estudante de direito em Barranquilla, recebendo a visita da mãe que lhe solicita que a acompanhe no sentido de venderem a casa dos avós em Aracataca, local onde ele nasceu e onde foi criado. É esse encontro o mote para este livro fabuloso, pois não se trata de umas simples memórias de Garcia Marquez.
Desde logo e com as descrições de Aracataca, ficamos com a ideia de onde Marquez foi beber a inspiração para criar “Cem anos de Solidão” e mais fascinados ficamos quando nos apercebemos que a história do livro é, simplesmente, a História da sua própria família. E continua.
Marquez vai desfilando as suas memórias. Memórias povoadas de histórias fantásticas mas reais, o surrealismo é algo que está entranhado nos povos caribenhos e da América do Sul, continente onde há muito circulam histórias e mistérios fantásticos. Quem nunca ouviu falar de Tiahuanaco, Cuzco, Nazca, Macchu Picchu, a perdida cidade do ouro dos Incas, os fantasmas da Jamaica, a misteriosa Ilha da Páscoa e tantos mais?
Pois bem, Marquez dá-nos o retracto daquele povo supersticioso, mas muito apaixonado e respeitoso da sua História e dos seu passado. Um mundo onde e segundo Marquez, “o estranho é não acontecer nada de estranho”
E vai por aí fora.
A sua infância e o modo como era visto e tido pelas pessoas que o rodeavam. As histórias que ia ouvindo pela bocas dos mais velhos, as suas observações e considerações pelo meio que o rodeava. O seu extemporâneo amor à leitura que o leva a ler, muito novo, obras como “As mil e uma noites”, a “Odisseia” de Homero, ”Orlando Furioso”, ”D. Quixote” e o ”Conde de Monte Cristo”, obras que lhe abriram as portas desses vasto e fascinante mundo da literatura e que o acompanharam desde sempre.
Mas Marquez vais mais longe.
Para além de narrar o passado dos seus pais e avós, ele situa, a nível geopolítico e social, a Colômbia no mundo, sobretudo ao nível das turbulências que desde sempre abalaram aquele país do Caribe. Amigo pessoal de figuras públicas, sobretudo figuras colombianas, destacando-se contudo a enorme amizade com Fidel Castro. Mas é curioso as personagens estranhas que marcam a sua vida e que lhe inspiraram a construção de personagens para os seus romances. Desde o coronel que fazia peixinhos de ouro numa velha oficina depois de uma vida de combatente (lembram-se do coronel Aureliano Buendía em “Cem anos de solidão”? Pois foi baseado no próprio avô de Marquez que fazia peixinhos de ouro depois de uma vida de combatente), até à sua tia que comia terra, passando pela tia que um dia lhes surgiu em casa e disse “venho me despedir, pois vou morrer!”, e à sua própria mãe, que com o seu forte carácter, o inspirou a criar a matriarca Úrsula, talvez a figura mais forte de “Cem anos de solidão”.
Em todas estas 579 páginas, Marquez narra tudo isso e muito mais. O seu percurso enquanto ser humano, o seu percurso estudantil e profissional. As obras e escritores que o inspiraram, a forma como estudou a aprendeu a técnica do romance, os mestres que lhe deram força para continuar quando as decepções o invadiam, os seus primeiros contos, enfim, todo um percurso rico em pormenores que finda em 1957 (fim deste volume).
Fico imensamente curioso em relação ao segundo volume, pois será nesse que Marquez narrará como construiu os seus romances, as suas estadias em Paris e no México (local onde escreveu “Cem anos de solidão”, a atribuição do Prémio Nobel e as suas amizades com escritores consagrados, entre os quais o “nosso” José Saramago.
Neste primeiro volume fica assim claro que as obras de Marquez espelham uma realidade que efectivamente é a do seu povo, uma realidade fantástica e sensual, inserida numa cultura secular com tantas tradições.
Quanto a mim, fiquei maravilhado com este livro e com o génio deste homem que, com os seus textos, procurou sempre honrar e homenagear um país e um povo que é o seu.
Talvez este livro tenha sido o mote para mais um fã de Marquez, ainda mais porque achei curioso algumas manias que ele tem que eu também tenho (por exemplo ele adora cheirar os livros novos e eu também). De certeza que vou ler mais uns romances dele, pelo menos agora que entendo o porquê desse estranho universo, Marquez tem agora outra lógica e outro sabor.
3 comentários:
Gostei muito também desta autobiografia de "Gabo" que mais parece um romance na forma sensível como é narrada. "Viver para contá-la" é um título maravilhoso que parece definir de forma apropriada o destino de certos autores.
Não li,ainda.
dele ainda me faltam uns quantos, mas tenho emcasa "Olhos de cão azul" na fila de espera...
CSD
Esta foi a obra que me qjudou a compreender o universo de Garcia Marquez.
Já havia lido alguns livros dele e incomodava-me o facto de não compreender o fascínio que tantos tinham pelos seus livros. Mesmo, admito, não sendo o meu estilo favorito (realismo-fantástico), não entendia o porquê de tanto fascínio e de tantos fãs.
"Viver para contá-la" é de facto uma obra maravilhosa, cheia de vida, história, cultura e de uma imensa sensibilidade.
Abraço aos dois!
:D
Nuno
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