sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Se Isto é um Homem – Primo Levi

Eu: “Terrível. Depois de ter lido a Segunda Guerra Mundial de Martin Gilbert, quis reler "Se Isto é Um Homem" de Primo Levi, autor que esteve em Auschwitz desde Janeiro de 1944 até Janeiro de 1945, altura em que os russos chegam ao campo.”

O Outro: “Já ouvi falar desse livro. É mais um relato de um prisioneiro nos campos de extermínio nazi”

Eu: “Mas não é MAIS UM! Não é justo considera-lo dessa forma, pois o livro é, acima de tudo, ou pelo menos é o que sobressai desde as primeiras páginas, uma reflexão sobre a condição humana”.

O Outro: “Ok, mas o livro não narra o dia-a-dia dos prisioneiros durante esse ano?”

Eu: “Sim, mas é mais profundo. Escrito logo depois de ter sido libertado, Levi narra a forma como foi apanhado e extraditado para Auschwitz que, na altura, era um nome como qualquer outro, sem qualquer tipo de conotação. Com ele ia milhares de pessoas que, um ano depois, apenas duas dezenas estavam vivas. Logo à chegada ele narra a selecção e o desaparecimento das mulheres, crianças e doentes.”

O Outro: “Mas na altura eles sabiam para onde iam essas mulheres e crianças?”

Eu: “Não… quer dizer, logo desconfiaram, embora e isso é algo intrínseco à condição humana, quiseram acreditar que essas mulheres e crianças estavam bem.”

O Outro: “sim... continua…”

Eu: “Bom, logo aí ele descreve os primeiros aviltamentos. Todos se despiam e ficavam nus à espera de coisa nenhuma. E a partir desse dia, era apenas fome, maus tratos, trabalho violento e a sombra da morte que pairava constantemente”

O Outro: “E como é o dia-a-dia desses prisioneiros?”

Eu: “Como deves calcular, uma miséria humana. A luta pela sobrevivência aguçava o engenho e ele descreve a forma como a pouca comida tinha cotação. Ou seja, roubava-se e trocava-se vários instrumentos pelo pouco pão que tinham direito. As doenças minavam o campo e, de vez em quando, lá vinha a selecção. É brutal a forma como ele explica o processo. Bastava o simples gesto do oficial das SS para que centenas de homens fossem parar ao gás, e eles sabiam que era esse o seu derradeiro destino.”

O Outro: “Sim, deve ser impressionante. Sobretudo tentar perceber como foi possível homens terem sujeitado outros homens a tão cruel e vil destino”

Eu: “Exacto e essa questão está latente em toda a obra. Levi questiona-se constantemente sobre isso, sobre os aspectos da alma humana, até que ponto um homem deixa de ser um homem diante de outros homens. O mal absoluto sem piedade pela condição humana. É assustador ver que o ser humano pode perder facilmente a sua consciência, tornando-se numa besta maléfica. E curioso perceber que, ao longo de toda a obra, ele vai colando alguns dos episódios, ou efectuando analogias, ao Inferno de Dante”

O Outro: “De facto. A História da Humanidade está cheia de episódios macabros em que a condição humana é esquecida, onde a natureza humana acaba por se mostrar como é violenta e sádica”

Eu: “E curioso constatar que, depois de ele escrever o livro, o mesmo foi recusado pelas grandes editoras italianas.

O Outro: “Estás a brincar!”

Eu: “Não, a sério! Devia ser ainda resquícios da ideologia fascista que inundou a Itália e que levou o país a unir-se aos nazis na Guerra Mundial. Mas o certo é que o seu relato pungente, objectivo e sereno sobre o dia-a-dia em Auschwitz, foi considerado sem interesse.

O Outro: “Poderá um homem sobreviver depois de sobreviver a Auschwitz?”

Eu: “Bela questão, pessoalmente acho que não!”

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um Homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios olhos e frio o regaço
Como uma rã de inverno.

Meditai que isto aconteceu.

7 comentários:

Cristina Torrão disse...

Excelente opinião. Gostei muito de ler :)

Helena disse...

É um LIVRO importantíssimo!

Unknown disse...

Temática extremamente forte, os prisioneiros dos campos de concentração nazi. A leitura deste livro deixou-me muito deprimida e revoltada.
Para apreciadores deste tema sugiro um livro impressionante: "O Violino de Auschwitz"- Maria Angels Anglada.
Aproveito para transmitir ao autor deste blog, o quanto aprecio as suas críticas e sugestões literárias.
Boas leituras!

Pedro disse...

Grande amigo!

Aqui está um livro que estou ansioso em arranjar para ler. Quero concordar contigo, isto não é mais um relato. É um tratado marcante sobre a condição humana.
Poucas coisas me dão mais volta à barriga que o Holocausto. "Se Isto é um Homem", se isto é um Homem de facto.


Grande abraço Miguel =)

Já agora, acabei de ler "O Rei de Inverno", de Cornwell, e não podia ter adorado mais. Vou já avançar para o segundo livro!

NLivros disse...

Grande Pedro!
Sabia que ias gostar do "Rei do Inverno" e de certo vais gostar dos restantes. Para mim é do melhor que li até à data e já li esses livros uma série de vezes.
Grande Abraço!

Daniel Gonçalves disse...

Convêm esclarecer - a bem da verdade e para que uma falsidade repetida várias vezes não se perpetue - um pormenor: o livro de Primo Levi não foi recusado pelas grande editoras italianas como foi dito no diálogo, tal não é verdade.
O livro foi sim recusado, em 1946, pela leitora ( a pessoa que tem como função ler as obras antes de serem publicadas) de originais da Editora Einaudi, curiosamente essa leitora era uma mulher judia, portanto tal facto não se deveu a qualquer resquícios da ideologia fascista italiana como também foi dito no diálogo. O livro acabaria por ser editado em 1947, pela mesma editora Einaudi, apesar da primeira rejeição pela pessoa responsável pela leitura dos originais. O proprietário da editora, Giulio Einaudi, passados alguns anos afirmou o desconhecimento de tal rejeição. Especula-se que tal rejeição se deveu a rivalidades de famílias judaicas de Turim.

NLivros disse...

Olá Daniel.
Obrigado pela esclarecimento.
Até à data li sempre essa versão, inclusivamente no trabalho jornalistico sobre a obra no jornal O Público na ocasião da sua edição na colecção Mil Folhas.