Uma crónica japonesa (crónica do mosquete ou
Teppo-ki) refere que no dia 23 de Setembro de 1543 um junco chinês com três
marinheiros portugueses, que se dirigia para Liampo, sofreu uma violenta
tempestade e foi parar à ilha de Tanegashima no Sul do Japão. Na altura os
portugueses já mantinham um intenso contacto comercial com a China e julga-se
que tinham já conhecimento da existência dessa ilha a que davam o nome de
Cipongo, até porque há muito que os chineses e coreanos mantinham trocas
comerciais com o Japão.
Em todo o caso, pode não ter sido bem como a
crónica de Teppo-ki menciona, pois há provas que apontam para a chegada de três
naus portuguesas, efectivamente em Setembro, comandadas por António Peixoto, António da Mota e Francisco Zeimoto
que desde logo encetaram contactos com as autoridades locais com o objectivo de
comércio.
Ou seja, duas histórias distintas. Uma mais
aventureira e a outra mais real que se coaduna mais na forma como os
navegadores portugueses agiam.
O Livro dos Mosquetes pretende dar-nos uma
visão da chegada dos portugueses e das percepções e considerações de ambos os
lados, sobretudo no que respeita aos usos e costumes dos japoneses e da
terrível invenção que os portugueses dão a conhecer: o mosquete.
E o livro surpreendeu-me pela sua qualidade.
Numa escrita fluída e intervalada por
capítulos muito curtos, o autor vai construindo um trama que se inicia com o
naufrágio do junco e da chegada a terra da sua tripulação. Nos dias em que esse
junco se encontra em reparações, João Boavida enceta os primeiros contactos com
aquele estranho povo e decide, com a autorização do seu capitão, permanecer
junto desse povo até ao regresso dos portugueses. O objectivo é de estabelecer
contactos comerciais e políticos com a autoridade (Daímo), aprender os costumes
e hábitos enquanto vai espalhando a sua cultura europeia.
Para o poderoso Daímo (senhor feudal) é uma
honra hospedar um estrangeiro, ainda mais porque compreende que aquela arma lhe
pode via a ser muito útil e dessa forma ganhar mais poder juntos dos outros
daímos. De notar que o Japão estava organizado numa sociedade milenar, de
hábitos e regras muito rígidas que estipulavam o direito à vida e à morte dos
senhores feudais sobre o povo. Samurais orgulhosos da sua descendência compunham
a elite social e a preparação para a guerra era uma constante, aliás, a guerra
era quase o único objectivo de um samurai.
É nesse contexto que João se vai confrontar e
daí surgem contraste enormes, não só de costumes culturais, como e
principalmente, de filosofias de ser e estar. Nesse sentido adorei o livro e a
forma como o autor conseguiu explorar e evidenciar esses contrastes. Por um
lado temos um representante de um povo que andava a desbravar mares e a
descobrir outros povos. Do outro, um povo que vivia isolado mas que possuía um
enorme apreço pela sua cultura milenar. O português representava um povo que,
preso pelas agrilhoas da religião, desprezava o corpo (por exemplo) e que tinha
uma perspectiva arrogante e até pesada face a várias questões. Os japoneses retiravam prazer de pequenas coisas, eram limpos e organizados e tinham um enorme
respeito pelos seus deuses mas sem caírem na idolatria que, por exemplo, os
bárbaros do sul, conforme chamavam aos portugueses, se atolavam.
Para mim essa é a principal virtude do
romance. O contraste entre culturas e a curiosidade em perceber que, de facto,
o ser humano a tudo se adapta, sobretudo quando se apercebe que o local onde
vive lhe moldou o caracter e que agora é uma pessoa melhor.
Curiosas as considerações e as ilacções que
Boavida vai tirando de tudo o que observa e vive. Fica assombrado pela forma
livre e despudorada como os japoneses vêm o sexo que, conforme João refere a certa altura, seriam considerados heréticos e indignos na Europa, no entanto João percebe que o sexo é algo natural, uma necessidade para o corpo e para o espírito que permite às pessoas sentirem-se plenas e felizes.
Gostei muito do livro e surpreendeu-me a
qualidade da escrita e a forma clara e honesta como o autor expõe um conjunto
de factos que ajudam a compreender o estabelecimento de relações entre os
portugueses e os japoneses. A forma como descreve o impacto de uma cultura
completamente oposta é algo que muito me agradou e que tornam o livro, a meu
ver, um bom veículo cultural.
Altamente aconselhável!
3 comentários:
Dá ideia que é um Xógum à portuguesa. :D
Olha, sim é um pouco isso. Só que aqui o protagonista é português.
Mas sim, é bem observado!
Não conhecia o livro, mas fiquei curiosa. Para mim, os pormenores da narrativa determinam a sua qualidade :)
Boas leituras!
Enviar um comentário